segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

UTOPIA



Chegaste!

Vieste do tempo ou do nada, chegaste sem te chamar, entraste sem avisar.

Lembro-me do dia em que apareceste, um dia cálido, era estio, fantasma ou sereia da serra, e te instalaste, quase sem dar por isso, no recanto do meu ser, silenciosamente, como uma brisa passada por entre as frinchas da minha janela.

Entraste na minha vida, uma luz translúcida na opacidade do vazio, fiquei fascinado no sentir da tua figura omnipresente, na imagem do teu sorriso sonhado, na meiguice da poesia da tua voz, na doçura do virtual dos teus lábios…

A tua presença veio trazer-me prados em flor, serras de matos sedosos, asas para voar no quimérico do infinito, esperança de dias a amanhecer, oceanos agasalhados em beijos, mas trouxe-me, também, mais inquietude ao meu desassossego, perturbou-me o espírito, incendiou-me a alma.

Não sei quem és! Não sei se encenas o passado ou o futuro da minha vida, na minha angústia de hoje, eu sei, és ilusão na paixão, és apenas utopia!

Num dos próximos dias, tal como chegaste, vais ser nuvem e desaparecer. Vais levar contigo o onírico de mim, o fogo do vulcão com que me abrasaste o coração, a lava vai ser pedra fria, no abandono do abraço dos sentimentos, no fim do prazer dos sentidos… Vou quedar-me tição apagado, no crepúsculo da ausência, vento uivante, na tempestade da alma, paixão esquecida, no anoitecer da vida.
Nesse instante, vou colocar-te no sidéreo do meu universo, uma estrela no firmamento de estrelas, uma luz que eu possa ver nos dias da minha escuridão, nos gritos do meu ser, nas noites de saudade…



(Partiste! Folha solta, levada pelo vento… Era Outono!)


Quinta do Anjo, 9 de Dezembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

domingo, 6 de dezembro de 2009

DESGARRADAS - SENTIMENTOS DISPERSOS



TEU CORPO - MAR

Nas ondas do teu corpo,
Minha alma a naufragar.
Fundura,
Loucura,
No desvario de amar.

No mar dos desejos,
A âncora soltei…
Dos sonhos,
Dos beijos,
Do corpo que amei.


Quinta do Anjo, 27 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves





CANTO AO ENTARDECER

Cantas melro, nestas horas,
Em cima da árvore fria.
Cantas ou será que choras!
Conheço-te bem o cantar,
Não te conheço o chorar.

Também canto com decoro,
À espera da noite fria.
Canto ou será que choro!
Conheço-me bem a chorar,
Não me conheço a cantar.

A vida é desgarrada,
É apenas desencanto.
Nesta certeza do nada,
Podes apagar o calor,
Não podes calar o amor.


Quinta do Anjo, 2 de Dezembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves


PLANICIE

Na planície do teu ser,
Desnudo o teu corpo de mulher.
Sou natureza:
Oliveira,
Pureza...
Sou poeira,
No mar
Do teu leito,
Onde me deito.

Quinta do Anjo, 5 de Dezembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A ARVORE



A ARVORE (I)

A árvore!

Um álamo ou choupo, na representação duma peça da natureza, no sentir da minha existência.

Árvore, minha mãe ausente, meu pai presente, mulher da minha vida! Companheira dedicada e confidente, dos meus desvarios, das minhas angústias, dos meus sonhos, das minhas paixões…

Dorme paredes meias comigo, acorda-me, docemente, na manhã, sob a forma dum melro madrugador e o suave gemido da brisa nas suas folhas, é o som do beijo húmido e apaixonado que me enlaça na alvorada.

Durante o dia, os seus ramos parecem agarrar o céu, na imagem dum pincel gigante, que pinta de azul o horizonte da serra.

Por entre a sua folhagem de sombras, anoiteço num mar de estrelas, no vislumbre da Lua das minhas paixões.

Nas estações da minha vida, a árvore, faz dela as minhas estações, numa visão de mulher bela e fascinante: na Primavera, encanta-me, na sua passagem de modelos, quando se veste de folhas e flores; no Verão, abraça-me na sombra dos seus ramos, o chão é alcova onde dormimos juntos; no Outono, desnuda-se de forma sensual, mostra-me todo o fascínio do seu corpo, no pálido sol da tarde, que me aquece a alma, fazemos amor na conjunção das nossas sombras; no Inverno, nos trovões da vida, na sinfonia do vento e na teia da chuva, é música calmante, é bailado, é rio doce, nos gritos do meu ser… E mesmo quando a neve lhe alveja os ramos e a geada queima as raízes, vejo apenas o grisalho do meu cabelo, no entardecer da vida.

No meu paganismo, ela representa o meu Deus, o meu pai enraizado, muitas vezes falo com ela, conto-lhe das minhas inquietudes, dos meus anseios, das minhas mágoas, dos momentos felizes… E, em momentos, parece que ela me entende, me aconselha e me acalma, no murmúrio dos dias que deslizam por entre os dedos abertos.

Amanhã, vou partir, mas regressarei um dia, serei raiz, serei tronco e ramos, serei flor, serei árvore, natureza…

A ARVORE (II)

No belo do teu verde,
A pintura do meu céu!
Natureza,
Beleza…
Por debaixo do teu véu,
Um corpo de mulher
Presente,
Num coração que sente.


Quinta do Anjo, 30 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

terça-feira, 24 de novembro de 2009

TARDE DE OUTONO



TARDE DE OUTONO

Sábado,
Tarde de Outono:
Vento,
No sussurro dos teus lábios;
Chuva,
No rio do teu corpo;
Escuridão,
Na cascata do desejo;
Paixão,
Na rosa dos jardins interditos.
Metamorfose do meu ser:
No gostar do Outono,
Por gostar de ti!

21 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves


SOLIDÃO

Não gastes os dias,
Vivendo uma ilusão!
A vida é aragem,
Uma miragem,
Em tarde de solidão.

22 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

V I D A

Nasci,
Nu,
Livre,
Selvagem…
Corpo meu,
Alma minha!
Amor,
Luzes.

Vivo,
Entrapado na obscuridade,
Prisioneiro na existência,
Amansado na sombra dos costumes…
Corpo de todos,
Alma amordaçada!
Paixões interditas,
Brumas.

Morrerei,
(amanhã?)
Emplumado,
Natureza,
Águia na serra...
Corpo da terra,
Alma no etéreo!
Quimera,
Eternidade.


Quinta do Anjo, 18 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

D E S E S P E R O




M A R

Sou mar,
Sou água…

Sou…

Escuridão,
No crepúsculo das águas.
Inquietude,
No desassossego das ondas.
Angustia,
No desfiladeiro dos silêncios.
Temporal,
Nas águas endemoninhadas.
Solidão,
No vazio da imensidão.
Sede,
No sal das lágrimas.
Ímpio,
No Deus, gaivotas.
Cais lamacento,
Nos dejectos da existência.
Odor,
Na maresia inquinada.
Nada,
No porto dos sem-abrigo.
Louco,
No fascínio das ninfas e no canto das sereias.
Quimera,
Na ilusão dos sonhos naufragados.
Fantasma,
No diáfano das sombras do vento.
Desespero,
Na água que se esvai na espuma da vida!






QUEM SOU EU?

Terra inóspita,
Água estagnada,
Sombra
Ou
Nada!


Quinta do Anjo, 11 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sábado, 7 de novembro de 2009

P O E S I A

A tua alma,
A minha poesia.
O teu corpo,
A minha paixão.

Poesia,
Paixão…

Longe de ti,
Sou poeta.
Perto de ti,
Sou um homem.
(… Amor!)


Quinta do Anjo, 7 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

C A V A D O R

Semeei:

Gritos,
Nos montes de silêncios;
Vazios,
Nos oceanos de esperança;
Utopias,
Nos paraísos da eternidade;
Angústias,
Nas asas das andorinhas;
Escuridão,
No caleidoscópio das planícies;
Inquietude,
Na suave brisa das ondas;
Loucuras;
No deslumbramento do desconhecido.

Mas também:

Afectos,
No oásis da tua natureza;
Beleza,
Na imagem da tua alma;
Poesia,
Na nudez do teu retrato;
Erotismo,
No sal da tua enseada;
Beijos,
Nas flores do teu jardim;
Abraços,
No enleio das tuas margens;
Paixão,
No vulcão do teu corpo.

Colhi:

Ilusões,
No hoje;
Esperança,
No amanhã;
Amor,
Em ti!


Quinta do Anjo, 1 de Novembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

D I S S O N Â N C I A - MUSA NUA

Tu,
És para mim:
A luz do meu amanhecer;
As tardes cheias da minha solidão;
A claridade do meu crepúsculo;
O dia da minha noite;
O sonho das minhas estrelas;
A esperança da minha natureza;
A rosa nua do meu harém de flores;
A bonança das minhas angústias;
O desaguar da minha inquietude;
O abraço do meu desassossego;
O beijo quente do meu arrefecer…
(Palavras triviais? Não, sentimentos meus!)

Eu,
Sou para ti:
A véspera do teu dia;
A escuridão das tuas manhãs;
Vento uivante;
Tempestade;
Pedra, em que tropeças no quotidiano;
Rio, que transborda e sai das margens;
Mar encapelado;
A flauta desafinada da tua sinfonia;
O trapo velho que deitas fora;
Pintura abstracta;
Natureza morta...
(Palavras tuas? Não, nudez da tua alma!)

Sim,
És, para mim,
A minha musa, a minha poesia, a minha paixão…
Sou, para ti,
Apenas um homem!
(Dissonância…)


Quinta do Anjo, 25 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

TRAVESSAS (17) - O PALHEIRO DA LOMBA



Palheiro!
As pessoas da terra chamavam-me, de forma depreciativa, palheiro e algumas desciam ainda mais de nível e de forma injuriosa davam-me o nome de curral.
Sim, sabia, não era uma casa de habitação igual a outras que via na aldeia, onde moravam pessoas e se ouvia o riso das crianças, mas também não era nenhuma barraca, nenhuma forma decrépita que causasse angustia ou dó.
Era uma casa bem talhada, feita de pedra de xisto e com lousas a servir de telha, agora até me sentia importante, estavam em moda as casas com pedra de xisto à vista, neste meu concelho existe mesmo uma terra – Piodão -, em que, na generalidade, as habitações são deste estilo.
Estava num local privilegiado, um lugar altaneiro à aldeia, já na encosta da subida para a serra, dali se avistava uma paisagem deslumbrante, natureza em todo o seu encanto, aldeias dispersas e ao longe a serra do Caramulo.

Sentia que era uma casa igual a tantas outras: um rés-do-chão que servia de guarida às ovelhas e cabras, separadas por um tabique e um primeiro - andar, onde se guardava de tudo um pouco, coisas do campo, como ferramentas, cortiços para as abelhas, temporariamente algumas colheitas e, essencialmente, palha para os animais se alimentarem nos tristes dias de Outono - Inverno, uma época em que, devido às inclemências do clima, não havia possibilidades dos animais saírem para pastar.

Devido ao local ermo em que me encontrava, sentia uma certa solidão, especialmente nas longas noites de Inverno, os meus donos via-os apenas duas ou três vezes por dia, nos momentos em que eles vinham alimentar os animais.
Por vezes, dava guarida a pessoas que eram apanhadas desprevenidas nas incidências da chuva inesperada ou nas tardes de trovoadas.
Recordo uma vez, seria Maio, em que uma violenta trovoada, com um ribombar assustador, relâmpagos, raios e um vendaval de chuva, me fez tremer de tal modo os alicerces, que cheguei a pensar no fim. Lembra-me, olhar os pinheiros da Fonte que, apesar de gigantes no tamanho, tremiam como varas verdes, cobardemente, no enfrentar da fúria da natureza.
As únicas companhias permanentes eram o gado no andar de baixo e em cima uns simpáticos ratos, que toda a noite faziam barulho na procura de algo para se alimentarem, umas osgas que comiam alguns insectos, uns pardais, que faziam o ninho nas frestas salientes do telhado e também uns animais voadores esquisitos, que somente apareciam à noite e a que chamavam morcegos.

Na Primavera – Verão, tudo era mais agradável, passavam por ali todas as pessoas da aldeia, na azáfama das sementeiras, das regas e da apanha das colheitas. Também era caminho, de passagem obrigatória, dos adolescentes e jovens, quando iam à serra apanhar mato para os animais, e lenha para as fogueiras.
Estes jovens, não raras vezes, utilizavam a palha, como se fosse lençóis em fofa cama, contando com a minha hospitalidade e o meu benevolente olhar, em contraste com a indignação dos meus donos, pois eles amassavam e espalhavam a palha toda, nas ardências dos seus movimentos. Os seus gemidos e ais não se assemelhavam nada aos uivos lamentosos do vento zangado, eram mais doces e profundos, assim como que uma suave brisa.
Igualmente, na loja, havia um carneiro e um chibo que, pelo que ouvia, faziam patifarias às suas companheiras, porque eu ouvia-as gritar de excitação ou de susto, não sei.

Com que encanto acordava nas manhãs, ouvindo toda a vida próxima, os animais pedindo comida, o chilrear dos passarinhos, o zumbir de todo o estilo de insectos, o aroma a terra orvalhada, a brisa fresca, o perfume das flores, o sol despontando sereno por cima da minha janela…

Adorava os dias lindos, os brilhantes dias de sol, até a minha silhueta ficava mais bonita, gostava de ouvir as gentes nas suas cantigas ao desafio, ficava feliz quando os passarinhos pousavam nos meus beirais, delirava com o cantar dum melro tenor, que cantava na cerejeira em frente e que todos os anos fazia o ninho numa silveira que havia ao lado dum vizinho olival.

Gostava, igualmente, das noites de luar, aqueles lindos luares de Agosto e Janeiro, em que a Lua surgia na serra do Vieiro, primeiro tímida e depois em todo o seu esplendor e logo a noite era dia, ocasião dos romantismos e das paixões, dos beijos e dos suspiros, que o meu ouvido conseguia captar na calada da noite.
Nesses momentos, o luar reflectia a sombra elegante da minha estrutura, e esta visão fazia-me sentir menos só, parecia que tinha ao lado uma alma gémea, e suspirava, sonhava como os mortais.

Nunca tive conhecimento da minha idade, permaneci sempre igual, nunca os meus donos se preocuparam em dar-me um aspecto mais belo, deste modo fui envelhecendo, comecei a sentir que o vento passava mais facilmente pelas frestas existentes, algumas traves estavam a ficar esburacadas devido ao bicho da madeira, o chão principiava a ter buracos, as tábuas a apodrecer, aparecia o musgo e a hera a tapar a beleza do meu corpo…

Já tinha conhecido duas ou três gerações de donos e os actuais também já não eram muito novos, assim foi sem surpresa que um dia apareceu um homem estranho para vir buscar o gado, pela conversa, tive conhecimento de que os animais tinham sido vendidos e a casa ia ficar somente para arrecadação, melhor dizendo, abandonada!
Esta situação causou-me uma certa perturbação, tinha-me habituado à companhia das cabras e ovelhas, mais do que propriamente à dos humanos, que via esporadicamente. Assim, a partir deste momento e quando constatei que, igualmente, só muito raramente por ali passavam pessoas - a aldeia tinha-se despovoado, uns tinham morrido e outros tinham partido para terras distantes -, apossou-se de mim a angustia da desistência e da solidão, as teias de aranha invadiam as paredes e até os ratos aos poucos foram desaparecendo.

Um dia, acordei, como toda a natureza envolvente, na sensação do ocaso próximo. Olhei, todo o horizonte estava cinzento, o fumo tapava-me a visão e logo de seguida, vindo de diversas frentes, surgiu o clarão vermelho do incêndio, toda a natureza encurralada na iminência do desastre, que imediatamente adivinhei. Primeiro assisti à destruição da serra, do mato e das árvores, os soutos de castanheiro foram a seguir e quando as línguas de fogo apareceram vindas do Curral Novo, da Fonte e do Alqueve, nesse momento já o fumo me tinha anestesiado e aguardava em calma sonolência a estocada final, qual touro amansado, em plena arena.

Em tempos, quando era mais nova, os meus donos tinham falado numa peça de teatro que eles afirmavam ter um final comovente, que dizia: ‘as árvores morrem de pé’! E nesses instantes finais verifiquei a verdade desta expressão, via todas as árvores, em redor, arderem quais fogueiras de S. João, mas os esqueletos fumegantes não caiam, ficavam de pé.
Nesta grandeza da glória na morte, também eu pensei, já delirando, que tinha de morrer de pé, e assim quando o fogo me entrou pelas entranhas, começando pelas portas e janelas, pelas traves de madeira e pelo soalho já esburacado, passando para a loja, eu sabia que tinha de resistir nas paredes, terminava os meus dias esventrada, um oco vazio, mas com as paredes hirtas, quais sentinelas vigilantes, morria, mas morria como as árvores… de pé!


Travessas - Arganil, 20 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

D E S I L U S Ã O

Sim,
Dizias gostar de mim.
Do meu ser,
De me ler,
Da serra
Da minha terra…

Eu,
Sentia-me teu.
Esquecia a solidão
Nas ardências da paixão,
Braseiro a arder
No entardecer.

Mas…

Não,
É tudo ilusão.
Gostas da pureza
Da minha natureza,
Deixo-te o lamento
No grito do vento!


Quinta do Anjo, 16 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

R E T R A T O - A MINHA SERRA E TU!

Os matos agrestes do alto da serra,
São as ondas dos caracóis do teu cabelo, cor de vinha outonal,
Onde as minhas mãos se esquecem no desbravar do desconhecido;

O lago existente no alto da montanha,
Reflecte o belo dos teus olhos, cor de castanha, com reflexos de terra,
Em que me meu olhar se incendeia, no fogo do entardecer;

O pico no centro do monte,
É a pirâmide colocada na tua face,
Nela me extasio na contemplação do feitiço envolvente;

A vereda, abaixo dum socalco,
É a imagem da tua boca, o fascínio dos teus lábios, cor de medronho maduro,
Na sua doçura de mel, nunca consigo saciar a fome e sinto o tormento da sede abrasar todo o meu ser;

Na distância, aquela penedia,
Mostra o teu rosto de madona, num quadro de génio pintor,
Em que me deleito… vejo uma imagem de Deusa, na visão do Olimpo;

…E aquela garganta profunda na montanha,
Não será a tua?
De garça – dizem – não, tua, para meu prazer, na meiguice da tua voz;

Na imagem daqueles estradões/aceiros,
Vejo os teus braços de seda,
Que me abraçam e tentam agarrar o mundo;

Nas colinas ondulantes um pouco acima do meio da serra,
Vislumbro o encanto dos teus seios,
Intumescidos de sedução e que me enlouquecem de paixão;

No espaço livre entre os montes e o vale,
Existe o selo indelével do rebento da folha,
A tua ligação ao mistério da vida;

No vale encantado, ladeado de árvores de cor outonal,
Vivo o deslumbramento do Jardim de Éden, a árvore da fruta dos desejos e o regato de águas puras e virginais,
Sou Adão, sou pecador, na visão do Paraíso;

Os montes que circundam o vale,
São o fascínio das tuas ancas,
Que parecem dançar volúpias na loucura dos meus sentidos;

Os riachos que saem do vale a caminho do mar,
São a maravilha do torneado das tuas pernas,
Nelas me afogo, na carícia da corrente;

Na visão panorâmica da serra,
O monumento és tu!

Nesta maravilha dos sentidos, vivo as minhas paixões: quando estou contigo, vejo a serra da minha terra; quando estou na minha serra, vejo-te a ti!


Quinta do Anjo, 8 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

TEU CORPO - OASIS OU PERDIÇÃO

Teu corpo é um rio, deslizando docemente por entre as margens do meu leito.

Nele sacio,
A sede,
A fome,
E o ardor dos sentidos.

Nas ardências do teu corpo,
Bebo,
Como,
Deliro.

O rio é de água salgada.
Bebo... e quanto mais bebo, mais sei, que nunca vou conseguir saciar a sede do meu ser.
Tento alcançar a outra margem,
Não sei nadar,
Afogo-me.
Só no estio as margens se encontram,
E tu és Primavera!


Quinta do Anjo, 30 de Setembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O U T O N O - DESACERTO




Se,
pudesse ter rosas no jardim da minha casa, para oferecer-te,
eu gostava do Outono;
Se,
pudesse ver no mar a cor do céu, a cor dos teus olhos,
eu gostava do Outono;
Se,
pudesse ver a Lua quando, na noite escura, te beijo com paixão,
eu gostava do Outono;
Se,
pudesse ver estrelas, numa tarde de Sol, quando te sonho,
eu gostava do Outono;
Se,
pudesse ver em ti a minha musa, na inspiração da tua imagem, quando nos perdemos nas ondas do mato verdejante, na serra da minha terra,
eu gostava do Outono;
Se,
pudesse pintar a beleza do teu corpo desnudado, num campo de flores,
eu gostava do Outono;
Se…



Disseste que gostas do Outono. Que é mesmo a tua estação preferida!

Gostas do Outono, gostas dos dias a diminuir, dos dias cinzentos, das nuvens do entardecer, do pôr-do-sol pardacento, das folhas secas, da vida caída, do desnudar das árvores, dos campos grisalhos, dos jardins vazios, da antevisão do ocaso …

Eu, no oposto, não gosto do Outono, gosto da Primavera, dos dias a crescer, do nascer do sol, dos dias de luz, do renascer da natureza, do rebentar das folhas, do vestir das árvores, dos campos verdejantes, dos jardins floridos, do amanhecer da vida …

Duas imagens em confronto: dum lado, a juventude que sabe que pode admirar a natureza morta, ver encanto no ocaso do dia, viver o presente, sonhando o amanhã, sem ter medo do futuro; do outro, na antevisão dos medos da decadência, o desejo de nascer todos os dias, viver cada dia como se fosse uma vida, admirar a natureza em todo o seu esplendor, sentir a esperança do amanhã, mesmo quando se vive na desesperança do hoje.

Temos os sentidos trocados: tu, que és Primavera, gostas do Outono; eu, que sou Outono, gosto da Primavera!

Neste desacerto de sentimentos, uma certeza, gostas do Outono, gostas de mim… eu sou o Outono da vida!


Quinta do Anjo, 22 de Setembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

TRAVESSAS (16) - A SUBIDA DA SERRA



Subi ao alto da serra da minha terra!

Dezanove horas, instantes do entardecer, o sol declinava no horizonte, o vento calava a suave brisa, algumas nuvens surgiam no céu, indícios de próximas mudanças no tempo, antevisão do término do Verão e da chegada do Outono.

Olhei o horizonte que podia alcançar, campos, planícies, montes e vales, terras dispersas, estradas curvilíneas, aldeias, pessoas feitas formigas, águias e cotovias, natureza, vida…

Sentei-me numa fraga, endeusei-me em pensamento, o homem e a natureza irmanados no mesmo sentimento de encanto e paz, o êxtase do paraíso no silêncio da serra.

(Travessas - A minha terra!
Montes e vales … e o céu no alto da serra!)


Tinha subido dos vales aos montes, tinha subido à serra!

Procurei o céu, não o vi, era apenas ilusão, estava no limite da terra, o corpo pedia-me para descansar – tinha atingido o objectivo -, e de seguida encetar a marcha da descida ao vale, o encanto do entardecer, do pôr – do - sol, do Outono da vida…

Ouvi o fascínio do pedido, a volúpia do paraíso prometido, mas senti a resistência do espírito, corpo e alma em contradição, a diferença no encanto dos grandes espaços, das montanhas mais altas, das varandas sobre o infinito, em contraste com os baixios da vida, os vales profundos, as visões do abismo… Assim, em vez de descer, usei da imaginação e coloquei uma escada, a fazer de ponte, para chegar mais acima, para poder alcançar as estrelas, para atingir o etéreo!

Quero viver a eternidade, na visão deste mundo que amo, perpetuar o meu ser na vivência dos meus amores, no sonho das minhas paixões…

Travessas - Arganil, 15 de Setembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

(Jornal de Arganil nº. 4221 de 29 de Outubro de 2009)

sábado, 12 de setembro de 2009

QUEM ME DERA...

Oiço, MADREDEUS, na cantiga: 'Cantiga do Campo’…

… quem me dera ser a pedra
em que tu lavas no rio!


Sonho (-te):


… quem me dera ser o vento
para te acariciar na lonjura!


Quinta do Anjo, 12 de Setembro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

PAIXÃO INTEMPORAL (... Delírio de sonhos, sonhados no tempo!)

Foste tudo para mim!
Paixão…Ilusão…Amor…
…Obsessão…Loucura!
Foste o meu dia, a minha noite, o meu sol, a minha lua…
…A luz do meu entardecer, as estrelas da minha escuridão!


Encontrei-te quando mais precisava de te encontrar!
Perdido em dia dos perdidos, em dia dos desesperados, procurei no teu olhar o ânimo que me tinha abandonado, a tua boca nada perguntou, os teus braços abriram-se para me receber, nada me pediste, nada te dei, nada demos um ao outro e, todavia, demos tudo!

Nesses momentos inquietantes em que a minha alma foi trevas, tu foste a âncora que me susteve, a corrente que me prendeu a um mundo que eu tinha, por desistência, abandonado!

Foste o bálsamo das minhas dores, foste o silêncio da minha tempestade, pouco falaste, mas disseste tudo, a imensidão do teu olhar deu-me a seiva que a vida me tinha tirado.

Deste-me carinho, deste-me calor, deste-me tranquilidade, deste paz ao meu espírito, não sei se me deste amor, nunca te perguntei, mas fizeste sentir-me amado e isso era tudo, o que, naquele momento, mais necessitava.

Em ti descobri tudo. Na ilusão da pintura do teu corpo, foste o meu modelo; na inspiração da minha prosa, foste a minha musa; no devaneio dos meus sonhos, foste a minha paixão…

Compreendeste a angústia da minha alma, o vendaval da minha existência e lentamente tornaste-te tu própria a obsessão da minha loucura.

Adorava estar contigo, brincar contigo, provocar-te para admirar o brilho zangado dos teus olhos, fixar a covinha do teu rosto, local onde te vão aparecer as primeiras rugas, contemplar a tua silhueta elegante, admirar o teu andar altivo de perturbante mulher…

Senti ciúmes de todos os homens de que me falavas, do vento que te acariciava a face, do sol que te beijava a pele…

Nesta fase da minha vida amei-te perdidamente, nos meus sonhos, tive-te, possuí-te, foste minha, fomos um só, foi o delírio dum momento de loucura, quando te procurei apenas encontrei a solidão do vazio.

Tudo na vida tem um fim! Esta ilusão, esta paixão unilateral, esta demência dos sentidos também vai ter o seu fim, eu sei, mas também sei que me vai causar muita dor, sei que vou-te dizer ‘até amanhã’ e sentir o coração destroçado, sei que vou dizer-te que tenho de fugir de ti, que não quero mais a tua presença, e, no entanto, vou andar a procurar os teus espaços vazios, a cheirar o teu cheiro na tua ausência, a ver-te de longe quando não me podes ver…

Nesta agonia de vida sei que nada te posso oferecer, que não posso lutar por ti, assim, só me resta o declive da curva do caminho, o fim da estrada, desta terra de solidão, desta terra inóspita!

Quinta do Anjo, Agosto de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

TERRA VIRGEM - (... a Terra da minha terra)

Sonhar-te;

Encontrar-te;

Desbravar-te;

Desnudar-te;

Violar-te;

Penetrar-te;

Rasgar-te;

Fecundar-te;

Semear-te;

Acarinhar-te;

Colher-te;

Amar-te...



Quinta do Anjo, 28 de Agosto de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O B S E S S Ã O

Olho o teu rosto, oval perfeito, abstractamente, pinto-o!
Admiro os teus olhos, grandes, adoráveis, vejo as cores do arco-íris!
Detenho-me nos teus lábios, carnudos, sensuais, sinto o arrepio do beijo!
Fixo o teu sorriso, belo, misterioso, que encerra promessas!
Adoro o teu cabelo liso e rebelde, sinto inveja quando te acaricia a face!
Deleito-me na contemplação do teu corpo, livro raro e inacabado, que gostaria de ler!


Na distância, os meus olhos procuram os teus e esse encontro é o saciar do desejo, da perdição de não poder passar sem ti.

Esta sede que me dilacera o corpo e a alma, perturba-me os sentidos, faz-me delirar, nesta febre dos dias passados apenas no sentido de te ver, de timidamente tentar acariciar-te e sonhar o vislumbre da tua imagem no vazio das horas inacabadas.

O desespero de estar a teu lado e sentir cada vez estar mais longe, é vendaval na inquietude da minha obsessão.

Esta vontade, esta ânsia de querer que desapareçam as horas de ausência, torna-me irracional, vejo-te em todos os lugares da minha imaginação, esta irrealidade reflecte o teu rosto em todas as sombras, em todas as mulheres que passam a meu lado.

Este viver impossível arrasta-me para a tempestade da loucura, procuro fugir de ti e cada vez mais os meus passos se dirigem ao teu encontro.

Gostava de esquecer-te, sentir que nunca te conheci, que foste apenas chuva de verão, uma visão fugaz num dia perdido na vida.

Esquecer que foste a paixão dos meus sonhos, a ilusão dum céu de estrelas em tarde de sol.

Gostava de esquecer tudo que no mundo me lembra de ti, esquecer as terras do sem fim, a pureza do teu ser, o mistério do teu corpo, o lago dos teus olhos em que me afogo…

Quero esquecer, ir para longe de ti, mas como? A tormenta dos sentidos pinta-me o teu rosto na escuridão da noite, as nuvens desenham-me o teu corpo, o vento sussurra-me a tua voz…

Nesta agonia, nesta hipocrisia da vida, neste engano de sentimentos, tenho de esquecer o ardor do fogo das tuas recordações, tenho de esquecer as tuas saudades!


Quinta do Anjo, Agosto de 2008

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

GOSTAVA DE AMAR-TE

Gostava de amar-te, como a noite ama as estrelas, o dia a madrugada, o sol a alvorada, os pássaros a imensidão do espaço, os homens a liberdade, gostava de amar-te…

Amar-te, como ama um náufrago perdido na escuridão do nada, um marinheiro ao ouvir o canto da sereia, um ébrio escondido da vida…

Gostava de amar-te, em local longe do mundo, loucamente, onde só ouvisse a tua voz, os teus silêncios, os teus suspiros, o calor dos teus braços, a carícia das tuas mãos, a doçura dos teus lábios…

Amar-te, como se fosse a última vez, perdidamente, o último momento da nossa existência, amar-te com paixão, mesmo sabendo que te amava para perder-te…

Gostava de amar-te, como o poeta louco ama a morte e procura nos seus braços o descanso imortal, como o amante apaixonado busca no abismo o fogo da sua paixão, como a alma perdida procura no silêncio o grito do chamamento da vida…

Amar-te, com desespero, com amor, com paixão, beijar e acariciar todos os recantos do teu corpo, sentir a sensualidade do teu suor e do teu cheiro, unir o teu corpo ao meu e neste êxtase de entrega e posse deixar desaguar o rio que nos afoga e nos arrasta para o mar da nossa ilusão…

Gostava de amar-te, mesmo na desesperança de saber que não te posso amar, que tu não me podes amar, que esta rebeldia é sonho perdido no nevoeiro de um dia que não existe…

Amar-te, na angústia da distância que nos separa, dizer-te que a vida foi cruel, foi ingrata, não nos deixou encontrar quando foste selva por desbravar, quando foste mundo por descobrir, quando o meu ser era bonança e não tempestade…quando te conheci, era tarde, foi somente para fugir de te encontrar!

Gostava de amar-te, meu amor!


Quinta do Anjo, Agosto de 2008

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

TERRA INOSPITA - FLORES E VIDA

Árvores decrépitas, ramos secos, termo de vida;
Mato derrubado, amorfo, pisado;
Ervas cor de cinza, caídas, exangues;
Pássaros mudos, voando sem rumo;
Calor tórrido, vento ardente;
Terra dura, terra sem vida, terra sem sangue.


Casas velhas, casas remendadas, casebres, pessoas ignorantes forçosamente dóceis, pessoas vendidas, esqueletos de vida…

Mundo de angústia, terra apocalíptica!

Uma flor.
Uma rosa.
Fragrância e paixão.


Uma flor, uma rosa no meio de pedras!

Uma visão doce de serenidade, de amor, em terra impura.

Contraste de vida: o caos e o nada, a esperança e a beleza!

No decurso do trajecto para esta terra, percorri, nos primeiros passos, jardins de frescos lírios, colhi um, foi a primeira ilusão, tudo foi efémero, quão efémeras eram as suas delicadas pétalas. De seguida encontrei um fascinante campo de orquídeas, ali descansei, saciei a fome, a sede e o ardor dos sentidos, foi o meu oásis, o meu amor…

Agora em terra de abandono, admiro, extasiado, uma rosa solitária, de folhas verdejantes e frescas pétalas, como que envergonhada na exposição da pureza e nudez do seu mundo, estranha imagem de mistério em terra bruta… Olho esta flor, contemplo a sensual beleza, o exótico encanto que emana da sua presença, a paixão do seu odor ofusca-me os sentidos, mas hesito, perturbado pelo sentimento de sedução e de posse, apresso o passo, não sei se com a ideia de fugir de me encontrar, ou de me encontrar fugindo… esta flor vai continuar a viver selvagem no vazio daquele mundo!

Amanhã vou seguir viagem, esta terra inóspita vai ficar para trás, os meus passos irão levar-me de novo ao recôndito lugar do meu entardecer, este é um destino que tenho marcado na minha existência e que, por desistência, não ouso contrariar. Nos próximos dias, o vento vai trazer-me, desperto, o cheiro daquela rosa e o adeus que nunca lhe direi, mas tal como desaparece no tempo o odor do vulgar perfume, também na voragem da vida, se vai esvair, dolorosamente, a lembrança dessa flor da minha paixão.

A realidade vai abrir um mar na distância que nos separa e, como mal sei nadar, sei que se um dia a procurar, será, convictamente, para me afogar!

Lírios de Primavera… orquídeas de Verão… rosas de Outono…

Ilusão! Amor! Paixão!

Flores.

Vida!



Agosto de 2008

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 30 de julho de 2009

ESTRADA DA VIDA - (CAMINHADA) - 60 ANOS DE ESTRADA

(Escrevi há dias este texto, numa antevisão ao meu aniversário próximo. Na concretização, hoje, dos meus 60 anos, passo-o para primeiro plano, representa, um pouco, a retrospectiva da minha vida).


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Nasci, cresci, andei, envelheci…
Nasci, bebé a andar de rastos, tropeções do instinto, no começo de vida;
Cresci, criança a pisar mato e silvas, adolescente a subir ao monte, num caminho por desbravar, jovem no circo das luzes, na aprendizagem da passagem para a outra margem;
Andei, homem a escalar a serra e a lutar contra os escolhos da vida; Envelheci, a esbarrar nas pedras, na descida da montanha, rumo ao vale.

Vivi de palpitações, namoros, paixões, amores…

Vivi de palpitações, ainda não conhecia as paixões, em criança, antes da puberdade;
Vivi os naturais namoros da adolescência e juventude, devaneios, sem sinais, nem recordações;
Vivi paixões ardentes, daquelas que doem, que deixam marcas, emoções no limite, obsessões na vida;
Amei uma vez, eterno amor.

Lutei, errei, perdi, ganhei…

Lutei, sempre segui em frente, nem sempre pelos melhores caminhos, na procura das melhores soluções, uma luta de carácter, não de atropelos, numa perseverança obstinada e, em momentos, desesperada;
Errei, muitas vezes me enganei, errei por confiar nas pessoas, por acreditar no mundo, por teimosia e, também, por orgulho;
Perdi nas lutas inglórias em que me envolvi, fui náufrago nas águas tormentosas do quotidiano, perdi os que imaginava amigos, vou perdendo os que mais queria, pequei no desvario das paixões, vou sendo vencido no duelo da vida;
Ganhei, por ter vivido, na paixão pela natureza, no afecto e amizade dalguns familiares e amigos, no amor da mulher, dos filhos e dos netos.

Hoje, presente; amanhã, futuro…

No presente de hoje, antevejo o futuro de amanhã!
Vivo no entardecer, na curva descendente, estou ficando mais pessimista, mais desesperançado... É verdade, nunca fui um indivíduo extremamente afoito, mas sempre colmatei a timidez, com a coragem de assumir riscos e a confiança da frontalidade e da sinceridade.
Hoje sou um homem com medos, medo das doenças, medo do desconhecido, medo do amanhã… Fiquei supersticioso, procuro trevos de 4 folhas e malmequeres que digam ‘bem-me-quer, muito’, guardo amuletos, aprecio capicuas, não deixo que me leiam a sina, abomino gatos pretos, não passo por baixo de escadas, não gosto das sextas-feiras, dias 13 e consulto, às escondidas, horóscopos.
Eu que nunca me preocupei, nunca pensei na velhice, começo agora a ter medo dos sessenta anos, a viver a angústia do crepúsculo, a antever o ocaso…
Não há dúvida, quando sinto que o corpo, que nunca me traiu, começa a fraquejar, quando percebo que me faltam horas e sobram silêncios, quando tenho consciência de que a minha vida joga com a morte um jogo viciado - uma partida de roleta russa -, então, o corpo treme, a tempestade assola o meu espírito, a inquietação invade-me a alma…
Sempre acreditei na vida, na juventude e no futuro, não gostava, de forma alguma, de deixar de ser um homem de esperança! Assim, tenho de eliminar o niilismo do meu ser, esquecer as rugas do corpo e da alma, voltar a viver os idílios, a nascer todos os dias, para ser mais uma criança, na difícil missão de construir um mundo melhor, a sentir o prazer da existência, a viver os encantos e os afectos…

Quimeras e sonhos…

Pela vida, pela esperança, pelos sonhos, pela natureza, pelas paixões, pelo amor… quero prosseguir a caminhada, rumo ao infinito, quero viver!

Quinta do Anjo, 23 de Maio de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sábado, 25 de julho de 2009

IMAGENS DA VIDA - O MELRO

O melro cantava, todos os dias, sensivelmente à mesma hora, em cima da mesma oliveira…
Do alto do seu ramo, elegante, na sua vestimenta preta e de bico amarelo, os seus cantos eram desafios para todos os outros pássaros que, tal como ele, alegravam as manhãs com as suas cantorias. Não sei se não seria também vaidade, ser o maior tenor da zona, o marcar terreno, em relação à sua apaixonada que, por vezes, lhe fazia companhia no ramo ao lado.

No quotidiano sossegava o meu espírito com árias de puro deleite, era o companheiro mais presente nas horas da minha solidão.

Hoje, à hora habitual, estranhei o silêncio, não o ouvi cantar. Fui junto da árvore, seu poiso, não vi o meu inspirador e quando os meus olhos são atraídos para a cerca de arame, que veda o condomínio fechado duma urbanização próxima, vejo o corpo do melro, no chão, morto. Provavelmente, num dos seus voos, foi imprevidente, não reparou na cerca e o choque contra ela, determinou o fim da sua existência. O progresso foi a causa da destruição dum ser, que fazia da vida o encanto de outros seres.

Quando vi aquele corpo preto caído na terra, a emoção foi mais forte, pressenti a orvalhada da manhã na névoa dos meus olhos, e na angústia do momento peguei-lhe, com carinho, fiz uma cova e enterrei-o. Este meu amigo não merecia terminar na boca de um qualquer predador, tinha direito a um descanso digno.
No instante em que terminei a tarefa, senti que o preto das suas penas era agora o negrume da minha alma.


Quinta do Anjo, 4 de Junho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sexta-feira, 10 de julho de 2009

TRAVESSAS (15) - O Castanheiro do Alqueve

Sim, sabia que era velho!
Não sabia, todavia, quantos anos tinha, embora ouvisse dizer que a sua espécie, por tradição, vivia 300 anos a crescer, 300 a viver e 300 a morrer e ele já estava na curva descendente há muitos anos.

Muitas gerações de pessoas tinham passado por ele, via as crianças, no início de vida, depois jovens e adultos e mais tarde velhos como ele e isto repetia-se, ciclo após ciclo, durante muitos séculos.

A sua morada era em Travessas, na encosta do Alqueve, um ermo, na fronteira que separa o souto dos castanheiros, da zona de mato e pinheiros, no caminho para as Aveleiras.

Do alto dos seus ramos gostava de admirar o Sol e o azul do céu, a Lua e as estrelas, ver o trânsito a passar na estrada, junto à Nossa Senhora da Boa -Viagem, em Sarnoa - Celavisa, avistar, durante o dia, os milhafres, os peneireiros e as águias, voando na imensidão do espaço da Serra do Porto Cimeiro, assistir à passagem dos gaios e corvos, para a Fonte e Lameiro Curral, apreciar, durante a noite, o deambular dos morcegos, assim como vislumbrar, na escuridão, os mochos, corujas e bufos, passarem a caminho da Vinha – Velha ou da Alagoa.

Nas suas pernadas e na folhagem mais recôndita, dava guarida e casa a todas as espécies de pássaros que ali quisessem resguardar-se ou fazer o seu ninho. Na Primavera – Verão era uma correria ver qual conseguia o melhor lugar, longe das vistas curiosas dos jovens adolescentes e das aves de rapina, que logo aproveitavam para lhes surripiar as crias e destruir os seus lares, assim como buscavam protecção das inclemências do tempo, das trovoadas e do sol abrasador.

O seu tronco, que três homens não conseguiam abraçar, estava agora vazio, era um tronco oco. Os muitos anos tinham-lhe levado o cerne, a sua robustez de outrora estava agora limitada a um simples anel, onde uma pequena camada do seu âmago, resguardada pela casca, deixava passar a seiva que lhe ia alimentando o resto do corpo.
Apesar de decrépito, quantas vezes este tronco vazio serviu para proteger as gentes da aldeia, do agreste frio de Inverno e da chuva que surgia inopinadamente, em ocasiões serviu mesmo de refúgio amoroso a alguns casais que buscavam no seu interior um lugar resguardado de indiscretos olhares.
Igualmente foi lugar de descanso ou mesmo dormida de animais nocturnos, como ginetes, papalvos, doninhas e gatos - bravos. Muitas vezes sentiu a presença de coelhos, que procuravam alimento nas castanhas caídas e lobrigou outras espécies, farejando a seus pés, como raposas, nas suas tarefas de caça, e outros animais de mais elevado porte, como texugos e javalis, cujo trilho de passagem, da Serra para o Pai Joanas, era mesmo ali ao lado.

Também amou, amou muito, a brisa enleava os seus ramos e as suas folhas numa vizinha castanheira, os gemidos do vento, eram os ais do seu coração apaixonado, foi o amor da sua vida… No início, uma louca paixão gerou vendavais no tempo, com o passar dos anos, o sentimento exacerbado deu lugar ao amor e a uma cúmplice e eterna amizade. Quando ela morreu, vítima dum fungo chamado ‘doença da tinta’, a existência deixou de ter sentido, passou a viver oco, como o seu tronco, na melancolia da solidão.

Teve filhos, muitos filhos, todos lhe levaram, perdidos nos temporais ou tirados pelos homens, que os utilizavam em utensílios domésticos, como cestos, cestas, pipos, varas e esteios para os corrimões das vinhas, ripas e traves para o telhado das habitações…

Durante séculos deu, a todos, o melhor de si: casa, filhos, guarida, a beleza das flores em Maio e castanhas, muitas castanhas, ano após ano, no mês de Novembro, sempre os seus ramos se curvavam carregados daquele fruto, que em épocas ancestrais, era dos principais meios de subsistência duma povoação abandonada e carenciada.

As eras foram passando e a tudo, o velho castanheiro, foi resistindo, resistiu às pragas, aos vendavais e aos ciclones - houve um, todavia, que o deixou deveras maltratado -, as pessoas, passavam no caminho e olhavam, com respeito, a sua longevidade e agradeciam tudo aquilo, que ele nunca regateou, na eterna oferta que fazia.

Assistiu às diversas transformações da vida: viu o trânsito na estrada Góis -Arganil, passar de carruagens puxadas a cavalos para os rápidos e brilhantes carros de agora; assistiu à passagem, lá longe, junto ao céu, duns pássaros enormes, que mais tarde soube chamarem-se aviões; admirou a mudança nas indumentárias das pessoas, gostava mais das roupas modernas, do que dos antigos trajes de linho, riscado, sarja, chita, estamenha, burel, surrobeco, cotim, sapatos em carneira e tamancos; não entendeu porque, antigamente, ouvia alegres cantigas ao desafio, em qualquer lugar, e mais tarde apenas o silêncio; ficava receoso quando na distância, por vezes, via clarões que, nos comentários que ouvia, diziam ser incêndios, felizmente naquela terra não havia desgraças dessas.

Quando já cansado, doente, velho e senil deixou de sentir e admirar os prazeres da existência, quando as pessoas, que passavam, lhe batiam, de forma depreciativa, com a sachola ou com o machado, lhe atiravam pedras para a toca e diziam: - ‘pobre castanheiro, está velho!’- nessa altura começou a ter uma sensação de angústia, um desassossego e uma dor de alma, que pronunciava uma desistência de viver, um aceno ao termo da vida.

Foi assim que no dia em que acordou pela manhã e olhou o Porto Cimeiro, a Serra da Barroca Larga, o S. João e a Vinha – Velha e viu um clarão vermelho, tudo em chamas, sentiu o calor anormal e a cinza cair-lhe nos ramos, logo um presságio lhe fez sentir que o ocaso estava próximo.

Depois de tanto ter vivido, tantas gerações conhecido e a tantas coisas ter assistido, foi quase num deleite de puro alívio que abriu os braços, no preciso instante em que sentiu as suas folhas e ramos principiarem a arder, e quando o lume lhe entrou, pela toca, nas entranhas do seu corpo, já era um ser entregue na volúpia do fim.


Quinta do Anjo, 10 de Julho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

(Jornal de Arganil nº. 4206 de 16 de Julho de 2009)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

sábado, 13 de junho de 2009

E X I S T E N C I A (1) - PRIMAVERA / A Manhã da Vida

I – INICIO DA VIDA

- Mila, olha o menino que cai da cesta abaixo.
- Se cair apanha-se!
Este foi para o meu ser a origem da vida, tinha 4 meses, o diálogo que a minha mãe fez com a minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, que me tem contado vezes sem conta, quando andando a apanhar azeitonas, em cima duma oliveira, chamou a atenção da criança que estava a tomar conta de mim, para evitar que eu caísse da cesta, que, almofadada com vulgares trapos, servia de alcofa ou cama, no campo, nessa época.

A minha Primavera, a manhã da minha existência, teve o seu começo em Travessas, numa velha habitação geminada com a casa da minha avó, junto ao Chafariz, no momento em que o mocho e a coruja piavam no Pardieiro, o galo dormia e a Lua surgia, envergonhada, ali para os lados da Cova dos Mouros, na Serra do Vieiro, seriam 11 horas da noite, instante em que abandonei o lugar escuro do ventre da minha mãe, a improvisada parteira me cortou o cordão umbilical, me fez berrar - acordando os vizinhos - e depois dumas vigorosas palmadas – começamos a apanhar logo à nascença -, me soltou para a vida:
- É um menino, disse a mulher que assistia ao parto, depois de me olhar para o ‘escrito’!
- Louvado seja Deus, disse dorida a minha mãe!
- É um rapagão, deve ter quase 4 quilos, volveu a mulher.

II – TRAVESSAS – BERÇO

Travessas, o meu berço, aldeia encravada na encosta da Serra da Gatucha, jardim eternamente florido, montes e vales, escarpas, fragas - altares de xisto -, fontes e riachos de águas castas, natureza no estado puro, o céu como limite à imaginação…

Eram tempos difíceis, nasci em 1949, a 2ª. Guerra Mundial tinha acabado há poucos anos e Portugal vivia, há duas décadas, debaixo duma ditadura fascista, em que o ‘pão nosso de cada dia’ era não ter pão e não ter liberdade, ter, sim, pobreza, muita fome e opressão.
As pessoas viviam em aldeias, como a minha, Travessas, sem um mínimo de condições, a estrada não era transitável para carros, a electricidade era a candeeiros de petróleo ou candeias de azeite, não havia água canalizada, não havia telefone, as casas não tinham qualquer conforto, os animais de criação, porcos, galinhas e coelhos - quem os tinha -, viviam em estrumeiras nas lojas das casas, com toda a falta de higiene e salubridade dai decorrentes, com cheiros, ratos, moscas, melgas e outros parasitas a invadirem-nos a habitação.

O meu pai, depois de ter andado uns anos a extrair minério nas minas existentes no concelho de Góis e depois do final da guerra, quando o volfrâmio deixou de ter interesse para o fabrico dos canhões da guerra, viajou para Lisboa, fazendo companhia a quase todos os homens da terra, na esperança de conseguir ganhar algum dinheiro para o sustento da família, prática que se revelaria de total insucesso, pois com ordenados de miséria, longe da mulher e dos filhos, o dinheiro mal dava para o seu amparo, para os copos e para algumas virtuosas senhoras que, de forma magnânima, alugavam o corpo para alguns minutos de prazer, nada sobejando no final do mês para ajudar os que ficavam na aldeia.

A minha mãe, coitada, jovem com pouco mais de 20 anos, tinha de cuidar dos filhos, tratar dos animais e trabalhar nos campos, para conseguir uns parcos haveres, que eram a alimentação da família, alimentação essa à base de sopa e broa, nalguns dias um pouco de carne de porco, como conduto, em raras vezes umas sardinhas e uns chicharros, mais que isto era luxo, somente os mais remediados se permitiam comer carapaus, carne de vaca ou borrego. Apenas comi o primeiro bife de vaca quando da minha vinda para Lisboa, tinha 12 anos!

A minha progenitora foi sempre uma mulher resistente, lutadora, de forte personalidade e muita coragem! Com apenas 22 anos, dois filhos pequenos, só, sem o apoio do meu pai, ausente em Lisboa, enfrentou de forma resoluta as dificuldades, soube dar-nos a educação do berço, sempre nos incentivou na educação escolar, apesar de iletrada, nunca permitiu que houvesse fome em casa ou que andássemos maltrapilhos, ensinou-nos o que sabia fazer na dura vida do campo, instruiu-nos para o combate da vida…
A rija têmpera da minha mãe ficou bem evidente num dia em que eu, criança e enfermo dum tumor numa virilha, devia ter 5 anos, não dando meia dúzia de passos seguidos, me levou, às suas cavalitas, num trajecto a pé - não havia estrada, nem dinheiro para transportes a partir de Sequeiros -, de Travessas para o Hospital de Arganil, uma distância de mais de 10 kms., para ser observado e, posteriormente, lancetado pelo Dr. Fernando Vale.

III – TRAVESSAS – ‘CARTEIRO’

Era uma vida, na realidade, de muitas privações!
Lembro, em determinada ocasião, a minha mãe ter falado com o carteiro que fazia a visita diária à aldeia:
- Sr. António, queria enviar esta carta para o meu Acácio mas só tenho 9 tostões trocados!
- Oh! Elvira, deixa lá que eu meto o selo e depois quando tiveres trocado dás-me a diferença.
Ele entendeu perfeitamente que a minha mãe não tinha mais dinheiro, o selo custava 10 tostões, mas fez-se desentendido e pagou o tostão em falta.
Era uma excelente pessoa, este homem, sempre pronto a ajudar, trazendo de Celavisa, onde havia um estabelecimento comercial, coisas que as pessoas necessitavam, escrevendo pequenas cartas ou postais, - muita gente não sabia ler nem escrever -, fazendo de portador de recados de/e para outras pessoas da Freguesia e dando injecções, só a mim, em determinado momento, quando um médico louco me diagnosticou um infundado problema pulmonar, deu-me 40, de estreptomicina, uma por dia, já não tinha sítio no corpo para levar mais picadelas.
As gentes da terra pagavam-lhe com afecto, com copos de vinho e deixando a garrafa da aguardente em lugar bem visível, para este homem, que era amigo de toda a gente, se servir a seu gosto. Também lhe dávamos, um pouco daquilo que a terra tinha de melhor - água -, neste caso água - férrea, ali no caminho para o Lameiro Curral, era a sua fonte predilecta.
Quando se reformou e deixou de vir a Travessas, a fonte, acredito, com saudades, encheu-se de ervas daninhas e silvas e aos poucos acabou por esconder-se e morrer.

IV - MENINICE

Foi neste ambiente que nasci e dei os primeiros passos.
As primeiras imagens, que tenho do meu ser criança, era os contos que a minha mãe me contava para adormecer: histórias dos lobos que, outrora, andavam na serra e que, famintos, comiam gado e também pessoas; as bruxas que se reuniam nas encruzilhadas para fazerem as suas festas e bruxedos; e os lobisomens, homens que à meia-noite de sexta-feira, se transformavam em lobos.
É óbvio, com histórias destas, a noite era passada com a cabeça debaixo dos lençóis, a tremer, cheio de medo e a sonhar com fantasmas, no entanto estes contos fascinavam-me e era ver-me todas as noites a pedir:
- Mãe, conta-me aquela história dos lobos ou então a das bruxas, está bem!

Uma outra situação era esconder-me quando via alguém estranho, quase como um bicho amedrontado, tenho mesmo uma lembrança, muito nítida, dum dia ter tirado as sandálias, ter fugido e ocultado num galinheiro e andar toda a povoação à minha procura, apenas porque veio um barbeiro à aldeia cortar o cabelo aos homens, estando eu também na lista dos cortes.
- Anda cá, meu menino – dizia a minha mãe – este senhor é simpático, depois de te cortar o cabelo, vai fazer a festa, tem no saco uma guitarra e uma concertina…
- Não quero que ele me toque!
Foi o diabo para me convenceram da bondade do barbeiro e deixar cortar a penugem, estava habituado às tesouradas da minha progenitora e esta alteração da rotina era algo de inimaginável.

Neste meio tranquilo, onde nada se passava - as únicas novidades eram quando chegava alguém de Lisboa -, foi decorrendo a minha meninice, a minha irmã na Escola, a minha mãe a afadigar-se no duro trabalho do campo e eu a acompanhá-la e a brincar, fazendo casinhas com pedras e paus, utilizando os troncos das folhas de aboboreiras como instrumentos de sopro e fazendo moinhos, nos regatos, com seixos a fazer de mós e juncos a imitar velas. Na aldeia, os brinquedos eram feitos por nós: bicicletas de madeira; bolas de trapo; arcos, de varas de madeira ou de rodas de bicicleta, com uma vareta a servir de tracção; baloiços, com uma corda presa num castanheiro; ramos de salgueiro – estoques -, que, sem o sabugo, atiravam rolhas de cortiça, etc.

A minha irmã, cedo deixou de ser menina - penso que nem sequer lhe foi permitido aprender a brincar -, depois das aulas, tinha de ajudar a minha mãe em todos os trabalhos e quando terminou a instrução primária, com tenra idade, 11 anos, foi criança – mulher, fazia tudo, semear e cavar nos campos, ir buscar mato para os animais e lenha para a fogueira, dar dias fora, recebendo meia dúzia de tostões e mais tarde foi criada, de gente com mais posses, fazendo os mesmos trabalhos e ainda lavar roupa, passar a ferro e limpar casas. O meu preito à minha irmã, mulher por obrigação, na origem da adolescência.
Existe na minha reminiscência, um ano em que a minha mãe teve de vir uns tempos para Lisboa, em virtude do meu pai ter tido uma pneumonia e necessitar de auxílio. Nesse interregno, a minha irmã fez de dona de casa e de mãe, e em conjunto, mais ela, eu era pequeno, apanhámos toda a azeitona da nossa pertença. Esta situação passou-se em Dezembro e o azeite era impensável perder-se, era o ouro das colheitas.
No agreste Inverno, lembro, andarmos a correr, para aquecer os pés, num terreno da Horta da Branca, pisando gelo, antes de subirmos às oliveiras.


V – ESCOLA – INSTRUÇÃO PRIMÁRIA


Quando fiz 7 anos, foi o baptismo escolar!
A escola era em Celavisa, sede da Freguesia, a cerca de 4 Kms. de distância, com uma ladeira com um declive bastante acentuado, numa extensão de sensivelmente mil metros. Na ida, a descida, no início do dia, era uma maravilha, as pernas voavam, o pior era no regresso, a subida no fim da jornada, as pernas eram chumbo.
O trajecto para a escola era feito em mais ou menos uma hora, no Inverno debaixo de chuva, frio e geada e no Verão sob um sol inclemente. Numa ocasião, em Maio, durante uma trovoada, caiu um raio num pinheiro, onde tinha acabado de passar há escassos instantes, nunca vi a morte tão perto.
- Miro – era a minha mãe a falar – toma conta do Carlos, protege-o, não deixes que lhe façam mal!
- Esteja descansada, quem lhe fizer mal tem de se haver comigo – dizia o meu primo, veterano, de 8 anos de idade.
Na minha lembrança existem resquícios deste primeiro dia de aulas: o receio da professora e dos colegas mais velhos, daí a razão deste pedido ao meu primo, para me apresentar e auxiliar, igualmente, recordo o almoço composto de batatas -fritas, misturadas com um ovo e um bocado de broa, não me lembro de levar fruta, mas isso não era problema, havia muita no caminho!

A minha primeira professora foi uma Senhora, de Torrozelas, uma aldeia do concelho de Arganil, que não deve ter engraçado muito comigo, porque, não raras vezes, me flagelou com uma régua, que usava para reprimir os indisciplinados. A minha insubordinação eram coisas menores, tirar fruta e ovos para comer, chamar simpatias a alguns colegas, especialmente ao pessoal de Sequeiros, e isso sim, mais grave, dizer que a professora andava metida com o sapateiro da terra, pois se o homem todos os dias ia à escola, com sapatos ou sem eles, na minha imaginação precoce, algo se passava.
- Noémia, de certeza que o sapateiro tem um caso com a professora!
- Tu és parvo, não vês que ele vem trazer-lhe os sapatos!
- Tantos sapatos! Todos os dias?
A conversa ficou por aqui, só que a colega ‘chibou-se’, a professora chamou-me, nem sequer fez o contraditório e deu-me duas palmatoadas em cada mão.
Também o barbeiro de Celavisa, um indivíduo não muito simpático, chamou a mestra e disse-lhe:
- Há um menino de Travessas que apanhei a roubar fruta ali nas Hortas, junto à passagem da ribeira, repreenda-o!
A repreensão foi mais um par de açoites, como se tirar fruta dum pomar, para comer, fosse um enorme pecado. O meu primo, estava de guarda ao dono, mas como não deu pela sua chegada, eu é que fui identificado e ele conseguir escapulir-se, sorrateiramente.
Uma outra situação caricata da qual fui protagonista: os pais dum colega, de Sequeiros, arrendavam uma quinta no caminho para a escola, onde tinham criação, ovelhas, coelhos e galinhas. Não sei porque razão, talvez para pagar alguns favores escolares, o filho do rendeiro, no regresso a casa, levava-me ao galinheiro onde comíamos os ovos, fazendo um buraco de cada lado, chupando o conteúdo e deixando lá as cascas, como se o ovo estivesse intacto, o que enganava os progenitores do jovem, que pensavam ser algum bicho que andava fazendo os estragos. O problema, uma vez mais, foi uma moça de Sequeiros – tinha azar com as meninas desta terra -, ter sabido da ‘marosca’, ter contado à professora e, mais uma vez, a régua como carrasco, na educação exemplar.
Um País, fascizante, oprimido, exigia repressão mesmo quando se reprimia a fome.

A partir da 3ª. Classe e até ao final da Instrução Primária, tive a sorte de ter uma professora, de Sarnadinha, arredores de Lousã, da qual só tenho boas recordações: jovem, na casa dos vinte anos, bons conhecimentos pedagógicos, disciplinada, sem cair no exagero, atenciosa, simpática, amiga e …bonita!
Com uma professora destas era um gosto ir às aulas, a motivação era enorme, quase todo o pessoal passava, havia uma total sintonia entre a mestra e os alunos, havia tempo para tudo: estudar, brincar, passear, conviver e admirar a beleza da ‘sotora’.
Apesar de estar no início da adolescência, já era malandreco e também admirador das belezas da vida, assim quando ia ao quadro e enquanto a professora dissertava sobre a matéria, eu sentava-me num degrau abaixo da sua secretária, apenas para ter o prazer de admirar as suas pernas, e não só!
Quando cheguei à 3ª. Classe, já era o professor auxiliar dos meninos da 1ª., e na 4ª. Classe, fui promovido, ajudava nas aulas as crianças da 2ª. Com este estatuto, tornei-me importante, só brincavam no grupo quem eu autorizasse e tinham de pagar um tributo, que, normalmente, era fruta importada, rebuçados ou chupa-chupas.
A única divergência que tive com a professora, foi uma redacção sobre a Madeira - não sei se nessa altura o Alberto João Jardim já era Presidente do Governo Regional -, em que, na minha opinião, era nota para muito bom e como ela não concordou, fez de mim um contestador revoltado, à frente de toda a Escola, e claro fui punido, julgo ter sido a única vez que ela me infligiu um castigo.
Esta professora, tinha efectivamente uma alta consideração por mim e eu, palpitação por ela, foi a minha primeira ilusão, eu menino de 10-11 anos e ela 29.
Por vezes chamava-me e tinha grandes conversas comigo, no meio dessas conversas, perguntava-me:
- Carlos, que é que tu queres ser quando fores adulto?
- Presidente da República – dizia eu, ‘modestamente’!

Nessa época, 1956-60, a Freguesia de Celavisa era pobre e o comer escasso, assim era bem-vindo um suplemento alimentar, julgo, proveniente da Holanda, composto por queijo em barra e leite em pó, que a Igreja fazia chegar à Escola, para o lanche das crianças. Até aqui tudo bem, o problema era que a pessoa responsável, na Paróquia, pela distribuição destes alimentos aos alunos e às pessoas mais carenciadas, ficava com a maior parte, que depois dava aos familiares, amigos e a pessoas em troca de favores, ou seja, chegavam produtos que dariam para o lanche de todos os dias, mas nós apenas tínhamos o quinhão de lanchar uma vez por semana. São estas situações que fazem a descrença das Instituições e daquelas piedosas pessoas, que, na aldeia e não só, sempre vi muito próximas das Sacristias e dos corredores do Poder.

Depois do exame da 4ª. Classe, estava com 11 anos, os meus Pais, infelizmente, não tinham posses para eu poder prosseguir os estudos, no entanto e a conselho da professora, que me via com capacidades para mais altos voos, a minha mãe falou com um descendente de Travessas, a morar em Bordeiro, Fernando Gomes, que intercedeu junto do Pároco de Góis, para me ensinar a matéria para o exame de admissão à Escola Comercial. Esta aprendizagem, normalmente, seria um ano de estudos, mas, este sacerdote, conseguiu o milagre - era a sua profissão -, de me preparar, em dois meses, para o exame.
Em Setembro de 1960, o Padre Belarmino, leva-me de mota, para um Colégio de Freiras, em Coimbra, onde estive 2 dias, para me submeter à prova de ingresso ao grau seguinte dos estudos. Foi uma experiência inolvidável para mim, nunca tinha ido a uma cidade, a terra maior que conhecia era Arganil.
Deste modo, só, na capital do Mondego, foi com um desvelo inexcedível que as freiras e alguns colegas, já veteranos, ajudaram um ingénuo pacóvio, no descobrir de novas gentes e novos horizontes.
Passei, sem dificuldade de maior, apenas ajudado por um colega na prova de desenho, área em que sempre fui medíocre, delinear jarras não era comigo.


VI – ALDEIA (1) - RAIZES


Esta aventura terminou, as circunstâncias não tinham mudado, havia que assumir o molde da terra em que nasci: menino, estatura meã, mas força para carregar lenha e mato, guardar ovelhas e cabras e ajudar nos trabalhos do campo.
Pegava numa corda e numa mochila e acompanhado de outros jovens da terra, ia buscar molhos de mato ao Ventoso e de lenha ao Pardieiro, levava o gado a pastar, aos campos e serras, abria e fechava a saída das águas dos poços de regas, transportava estrume para as terras e ajudava, no que podia, na feitura das sementeiras.
Estas tarefas duras e cansativas tinham o lenitivo de alguma e sã camaradagem, brincava-se, cantava-se e havia mesmo alguns namoricos, algumas paixões, especialmente no pessoal mais velho, se aqueles matos ou aqueles palheiros, existentes nos campos, falassem, teriam muitas histórias de sexo e amor para contar.

VII – CÃO - ‘JANOTA’

Algures, nesta fase, os meus pais compraram, com bastante sacrifício monetário, uma casa no Cabeço, à entrada da aldeia, o que permitiu uma mudança para uma habitação mais condigna.
Uma casa isolada exigia um cão de guarda e o animal que nos ofereceram e que viveu connosco até à vinda da família para Lisboa, foi dos animais mais maravilhosos que me foi dado conhecer e do qual, ainda hoje, tenho imensas saudades. Chamava-se ‘Janota’, uma fêmea possante, amiga dos donos, mas uma fera para tudo que se aproximasse da casa.
Quando era pequena um vizinho, a cortar lenha, atingiu-a com um pau e um meu primo, a rebolar pedras, deu-lhe com uma no focinho, pois, pela vida fora, estes dois ‘agressores’ foram contemplados com constantes mordidelas, o bicho nunca mais se esqueceu deles, igualmente mordeu ao carteiro e ao burro do moleiro, pelo que tivemos de a prender.
Era, simultaneamente, um animal agressivo, mas também meigo: por vezes soltava-se e ia bater às portas das pessoas para lhe darem comer, não fazendo qualquer mal e não esquecia o meu pai que ia somente à aldeia, escassas vezes por ano.
Numa ocasião, depois de parir uma ninhada de cachorros e quando um dos filhos morreu, a cadela cavou um buraco, como que uma sepultura, onde enterrou o pequeno filhote e eu observei, pasmado, as lágrimas correrem-lhe pelo focinho, chorámos os dois, nunca consegui esqueci esta cena.
Era um animal tão amigo dos donos que quando, por qualquer motivo, nos tínhamos de ausentar, por exemplo para ir ao Carvalhal, terra da minha mãe, a Janota não comia nada nesses três dias e a minha tia, que ficava a tratar dela, dizia:
- Só começou a comer quando vos cheirou no alto da serra!
No culminar dessa dedicação, quando a minha mãe e irmã vieram para Lisboa e houve que encontrar um novo dono para ela, o cão pouco tempo teve de vida, deixou de comer e morreu de saudades.
É por estas e não só, que, em muitas ocasiões, gosto mais de animais irracionais, de que de gente que se diz racional.


VIII – CIDADE (1) – LUZES E SOMBRAS


Foi um período curto, esta minha passagem pela dura vida do campo. Com cerca de 12 anos, o meu Pai, que continuava sozinho, em Lisboa, numa das suas visitas a Travessas, normalmente fazia estas visitas duas vezes por ano, levou-me com ele, com o intuito de trabalhar – nesse tempo não era crime trabalhar com 12 anos -, e, se possível, caso a situação económica o permitisse, mais tarde estudar.
Fui viver com o meu Pai e mais três outras pessoas para uma águas-furtadas, na Rua da Atalaia, no Bairro Alto, em condições totalmente degradantes, com o céu e as estrelas como paisagem, através das clarabóias, - pelo menos era uma vista romântica -, a companhia permanente de ratos, baratas e de gatos a miar em cima do telhado. Uma noite, dois destes gatos, zangados ou com a excitação do cio e como a clarabóia se encontrava semi-aberta, vieram terminar a quezília em cima da minha cama.

O meu primeiro emprego foi numa fábrica de malhas e a minha tarefa andar a entregar caixas com roupas, nas lojas e a pessoas particulares.
É evidente, 12 anos, só, pela cidade, aproveitava o dinheiro que me davam para os transportes, ia a pé, ou pendurado no estribo dos eléctricos e autocarros e esse dinheiro, a que juntava as gorjetas que me ofereciam, servia para comprar os normais atractivos da adolescência.
Era ver-me caminhando pela cidade, livro numa mão e peças para entrega na outra, devorava leitura - revistas aos quadradinhos e livros de bolso, cowboys, guerra e ficção científica e outros mais eruditos, Júlio Dinis, Camilo e Eça -, comia chocolates, daqueles dos furos, bebia cerveja e sumos e fumava dois cigarros, por dia, que adquiria, avulsos, por 5 tostões, de marcas já extintas como Paris, Porto, ou Definitivos. Esta dos cigarros é original, o vício que apanhei foi continuar, pela vida fora, a fumar sempre dois cigarros por dia, ainda hoje o faço.
O meu Pai encontrava-me, por vezes, na rua nestas situações e não gostava nada do que via, e depois de mais umas asneiras, como desviar-me do trabalho, à tarde, para ir ao cinema e outros pecados, resolveu devolver-me à minha aldeia e à minha mãe.


IX – ALDEIA (2) - CAVADOR


Os meus 13 anos - só estive um ano em Lisboa -, foi um ano duro. Um vizinho, ainda familiar, de Travessas, arranjou-me trabalho para os Serviços Florestais, ele era lá Capataz, e esse período não vou esquecer jamais: plantar árvores, cortar mato e relva, abrir estradas e servir de aguadeiro:
- Rapaz, trás cá água – eram os outros trabalhadores a exigir – despacha-te, não nos deixes morrer à sede!
Largava a tarefa que estava a fazer, na verdade o mesmo trabalho que os outros, e ia buscar a água a uma fonte distante, com uma vasilha - um caneco de madeira -, com uns rebordos que me cortavam os ombros e as costas, tudo isto sob um sol abrasador, água essa que depois distribuía pelos colegas sedentos.
Estas tarefas, duma dureza inaudita para um jovem da minha idade, fez baixar o ânimo, conhecer as agruras da vida e aprender a lei das aldeias, aqui os verdadeiros civilizados eram os ignorantes e analfabetos, os instruídos, mais letrados, eram os maiores selvagens. Apesar de tudo foi uma experiência que me ensinou muito, com 14 anos era homem!

Nessa época, os passatempos eram escassos, somente, no Verão, as tradicionais festas das aldeias fugiam um pouco à rotina. Todas as aldeias organizavam a sua festa anual, com o principal atractivo a ser, para a juventude, a confraternização e os bailaricos, sempre com a esperança de encontrar uma alma gémea e apaixonada.
Ao fim de semana, ia a Celavisa ver televisão - ninguém a tinha em Travessas -, ver as notícias, a TV Rural, do Engº. Sousa Veloso, Ranchos Folclóricos ou Melodias de Sempre e para isto fazia 4 kms., para cada lado, com a noite, as estrelas, os pirilampos, as corujas e os mochos, como companheiros.
Uma outra situação de convívio era a recolha das sementeiras, em Setembro, com a apanha das uvas e a feitura do vinho, as desfolhadas do milho, com a descoberta da espiga vermelha – milho – rei -, que dava direito a um beijinho a todas as moças, e também a convivência no descasque dos feijões.
Serões em alegre cavaqueira, diálogos espirituosos, contos, anedotas e umas carícias às escondidas, na escuridão da noite.
Uma outra distracção, era ir achar e tirar ninhos de pássaros. Bem, não era, verdadeiramente, um divertimento, era uma incultura, um massacre dos pobres e inocentes passarinhos.
Ia pelos campos e serras, no início da Primavera, Março – Abril, e todas as aves que espantava, de certeza, tinham ninho próximo. Depois era só ver o estado do mesmo, se tinha ovos, ou já petizes, marcar o sítio e aguardar que os passarinhos crescessem, oportunidade para um suplemento alimentar - o comer escasseava -, o que não deixava, todavia, de ser um crime, mas eram, também, costumes ancestrais, passavam de geração em geração.
Ainda nesta área e continuando os atentados contra a natureza, colocava armadilhas, os tradicionais costelos, que com um chamariz de formigas de asas ou bichos dos caules do milho – partia os milheiros todos para os encontrar -, serviam para apanhar alguns tipos de pássaros, que tinham o mesmo destino daqueles que apanhava nos ninhos.

Também continuava a ler, sempre gostei muito de leitura, livros e jornais – ‘O Século’ e a ‘Comarca de Arganil’ -, que me emprestavam Benjamim Gomes e Silvério Neves.



X – CIDADE (2) – TRABALHADOR/ESTUDANTE


Com esta idade, 14 anos, o meu Pai, ou com remorsos pelo parco acompanhamento da minha primeira experiência em Lisboa, ou por entender que eu merecia algo mais do que ser um vulgar cavador na aldeia, foi novamente buscar-me e, desta vez, mais adulto e mais responsável, para sempre.
O emprego, desta feita, foi num armazém de papelaria e o trabalho separar os materiais, consoante as encomendas dos clientes. Foi mais um ano nesta tarefa, em que terminei a atender clientes, ao balcão, num estabelecimento, do mesmo dono, na baixa lisboeta.
Não estive mais que um ano nesta incumbência, fui aliciado para trabalhar numa multinacional americana e também, nesse mesmo ano, dei entrada na Escola Comercial Patrício Prazeres, na Costa do Castelo, para, em estudo nocturno, tentar tirar o Curso Comercial, uma área profissional com objectivos aliciantes.

Este período, dos 14 aos 20 anos, embora muito duro, trabalhar de dia, inicialmente, numa fábrica de rolos para máquinas registadoras e somadoras, e mais tarde, num stand de atendimento público, e estudar à noite, ou seja quase 17 horas fora de casa, com um pequeno intervalo, em alguns dias, para jantar - saída de manhã, cerca das 7 horas e chegada da escola por volta da meia-noite -, foi das mais entusiasmantes da minha vida: trabalho cansativo para um jovem da minha idade, mas sã camaradagem com os colegas do trabalho, e depois a escola, com o incentivo da aprendizagem e, também, outros convívios.

O meu 1º. Ano foi numa escola, feminina de dia e masculina à noite, assim todas as carteiras estavam marcadas com mensagens e corações apaixonados, não esquecendo os bilhetes que deixávamos nas frestas existentes nas referidas carteiras.
O 2º. Ano, já na Escola Comercial Veiga Beirão, no Largo do Carmo, a escola era masculina, de dia e de noite, mas existia uma escola feminina perto, a Escola D. Maria, na Calçada do Combro, à qual íamos esperar as meninas na hora da saída, normalmente às sextas-feiras.
- Carlos, hoje é dia de ir buscar as donzelas – dizia o António, um aluno, meu amigo, já veterano, cheio de ‘jogo’ -!
- Vamos, antes que se faça tarde e elas fujam!
Não fugiam, claro, o que elas queriam era alguém que as protegesse, na noite escura do Bairro Alto, a caminho da Baixa Pombalina.
Às vezes perdíamos algumas aulas nesta missão, eram os naturais devaneios e o fogo da juventude, tudo por uma boa causa, o encanto feminino.
Andei nesta vida, trabalho, estudo e, nos intervalos, alguma farra, durante seis anos, mais concretamente até ir para a tropa, o que sucedeu quando tinha 20 anos, tendo deixado três cadeiras por acabar no curso que frequentava. Este curso nocturno era de seis anos e apesar do trabalho cansativo e das loucuras próprias da idade, acabei por não perder muito nos estudos, somente atrasei essas tais três disciplinas (Francês, Inglês – não gostava de línguas - e Contabilidade, que era a disciplina final do curso).

Foi por esta época que, finalmente, a família se reuniu toda em Lisboa, com a vinda da aldeia da minha mãe e da minha irmã. Alugámos uma casa, na Travessa dos Inglesinhos, igualmente, no Bairro Alto, casa essa já com melhores condições, embora exígua, vivíamos os quatro em somente duas assoalhadas, com apenas uma casa de banho, sem banheiro, deste modo, o banho tinha de ser semanal e nos balneários públicos.


XI – CIDADE – PAIXÕES


Por esta altura, à volta dos 15 anos, perdi a virgindade, ali para os lados do Monsanto, tendo como tecto o Sol e o azul do Céu, a sombra dum pinheiro, um plástico como lençol da cama e uma meretriz que dizia:
- Despacha-te, filho, antes que venha a polícia!
Foi uma experiência, que mais tarde recordei, como das mais frustrantes da minha vida, uma sensação primitiva e animalesca, não era o sonho que se idealiza no dealbar da vida sexual, a origem do ser homem, mas, naqueles instantes, tudo era novidade, não pensei muito nisso!
Tive mais umas tantas experiências destas, na minha adolescência, mas essas já em quarto e com lençóis a fazerem de ondas de mar, no naufragar dos sentidos.

O Bairro Alto era, nessa época, um misto de tascas, para beber cervejas e copos de vinho a granel e onde, fora de horas, se cantava o fado vadio; casas de pasto, com comeres de confecção muito duvidosa; casas de fado, já para umas certas elites; bares de melindrosa reputação, locais onde se convivia, jogava matraquilhos e depois duns copos, se escolhia a menina para ir para a pensão da esquina. Alguns, com mais sorte, dinheiro ou charme, tinham a distinção de irem dormir no quarto onde a donzela tinha o seu lar!

A partir dos 16 anos começo a ter uns namoricos, normalmente duas ao mesmo tempo, para não cair na rotina, coisas sem interesse.
Ia, com alguns colegas, à referida Escola D. Maria, fazer escolta às meninas, íamos ao café beber uns copos, algumas vezes ao cinema e trocávamos beijos e outras carícias, nos vãos das escadas e outros locais escondidos.
Também as vizinhas não escapavam, o passatempo preferido era ir para a varanda trocar lânguidos olhares apaixonados e havia mesmo uma que me enviava mensagens, presas a molas de roupa, que arremessava para a minha varanda, com grande escândalo da minha mãe quando se apercebeu da situação:
- Carlos, aquela menina, da janela de frente, é uma desavergonhada!
- Nada disso, mãe, ela está apenas a pedir-me uma explicação, sobre uma matéria da escola – a minha mãe, infelizmente, não sabia ler! -.
Com o avançar da idade principiam a surgir novas conquistas, agora daquelas mais a sério, das que faziam doer, com muita paixão, muita ardência, mas também com ciúmes, discussões, amuos e não só.
Com 18 anos, vivi a maior paixão da minha adolescência, na figura duma jovem da zona de Azeitão, morava numa quinta dos arredores da vila e todas as semanas, ia passar o domingo com ela, era o único dia que tinha livre do trabalho e estudos. Era um êxtase e uma loucura esses dias do reencontro, os passeios de mãos dadas, no meio das flores e do mato agreste, os abraços e os beijos no alto do monte, apenas com a natureza como testemunha, as promessas de eterno amor, os olhos embaciados no adeus da despedida…
Como todas as paixões, em que o amor é apenas ilusão, também esta teve o seu epílogo após dois anos de fascínio, ciúmes e obsessão.

Na década de sessenta, havia um costume na juventude, a procura de amigos através da troca de correspondência. Uma revista, ‘A Plateia’, trazia anúncios de jovens com esse objectivo, - nessa altura era um intuito mais singelo, do que aqueles ‘simpáticos’ escritos que agora vemos nas páginas de alguns jornais -, e todo o pessoal aderia a essa moda.
Como sempre tive algum jeito para escrever, depressa aliciei diversas correspondentes, das mais variadas regiões do País e não só, também de Angola, Brasil, etc.
Estes intercâmbios, muitas vezes, transformavam-se em breves paixões e mesmo alguns namoros mais sérios. Lembro uma situação, em que enganando a minha mãe, ao dizer-lhe que ia estar com a namorada da época, apanhar o comboio de manhã, em Santa Apolónia para Coimbra e regressar à noite, depois de passar o dia com uma estudante universitária, uma moça da região da Covilhã, a estudar Economia na cidade do Mondego.
Nestas circunstâncias era um orgulho e uma vaidade, ter um enorme arquivo de cartas e fotos das donzelas e eu, claro, não fugia à regra. Era um trabalho insano escrever a todas, mas, consoante o interesse, enquanto para algumas a resposta era imediata, outras tinham de esperar mais tempo, com as desculpas habituais, do trabalho e estudos.
Quando me casei, os meus pais, avisadamente, deram sumiço a todos estes ‘troféus’, que tinha levado para a minha terra, Travessas.

XII – FERIAS

Na minha juventude e derivado do impedimento dos meus pais, passei férias, diversas vezes, sozinho, no meu burgo, Travessas, na terra do meu cunhado, Colmeal e na aldeia da minha mãe, Carvalhal do Sapo.
Sempre adorei estas terras, estas aldeias e assim que tinha possibilidade, era ver-me fugir do bulício da cidade, das correrias e das luzes e procurar a tranquilidade do campo, das serras e das estrelas.

Em alguns anos passei férias na minha aldeia, em casa dos meus tios Ramiro e Eugénia, sempre gostei muito destes familiares e eles retribuíam, com juros, este afecto:
- Carlos, o presunto está na arca e o vinho está no pipo, mesmo que não estejamos em casa, sabes o sítio!
Pequenos gestos que me cativavam, sentia-me bem na companhia do meu tio, sempre um bom conversador, amigo de transmitir o que o tempo e a experiência da vida lhe tinham ensinado, assim como sempre admirei a minha tia, a primeira pessoa a levantar-se em Travessas e a cuidar da terra como se ela fosse mais um filho.
Foi um prazer conviver com homens como o meu tio Ramiro, Silvério Neves, António Simões, Benjamim Gomes e Carlos Gomes. Aprendi muito com eles, sempre admirei, na diversidade, a sua maneira de ser, sentia-me bem a seu lado, o convite para ir à loja comer uma qualquer bucha e beber um copo de vinho, as conversas amenas, o jogo das cartas... Pessoas com pouca instrução estudantil – rara gente a tinha nessa época -, eram doutores na sua arte de cavadores e de tratar os campos, sabiam interpretar os sinais do tempo, gostavam de ensinar costumes ancestrais, foram verdadeiros amigos!
De Carlos Gomes, tenho presente uma expressão que este homem, já na fase da velhice, mas ainda com espírito, costumava dizer quando, na brincadeira, lhe chamava a atenção por ele andar sempre vestido com a mesma camisola vermelha:
- Oh! Ti Carlos, qual a razão de andar sempre com essa camisola, é alguma questão de fé?
- Não, Carlos – dizia-me ele -, é um engodo para as raparigas, elas vêem a camisola de longe e olha, quando vou à serra, é um desaforo, não me largam!
Uma outra, também deste homem, uma quadra que costumava cantar e que nunca esqueci:
- Oh! Rapazes rezem todos;
- Que a Francisca já morreu;
- Ela diz que a dava a todos;
- Só a mim nunca ma deu.
Não sei o que ela dava, mas o povo, na sua brejeirice, tirava as suas ilações.

Em Colmeal, ficava na casa de António Almeida Freire e Miquelina Freire, pais do meu cunhado - aos quais presto a minha homenagem de saudade -, os quais em conjunto com a sua filha, Fátima Freire, sempre me receberam de forma inexcedível.
Foi para mim uma honra e um prazer ter convivido com estes inesquecíveis amigos, a simpatia e amizade que me dedicaram, as horas que passámos em alegres cavaqueiras, o que aprendi no jogo da sueca e bisca – de – nove, com o patriarca da família, as músicas que ouvi no gira-discos, na varanda da casa, acompanhado pela Fátima e os manjares deliciosos confeccionados pela D. Miquelina.
Colmeal, era, nesse tempo, uma terra com muita juventude, especialmente no Verão, assim o ambiente era excelente: o convívio, as brincadeiras, os jogos, os bailaricos, os passeios, os banhos no rio, os serões… Enfim, férias inolvidáveis em que o Cupido, por vezes, lançava as suas setas.
Dessa época lembro os amigos, Álvaro, hoje médico, a Cidália e a Aurora Brás, penso que ainda somos parentes afastados e outros jovens que a minha memória já esqueceu.
Colmeal, paraíso do Ceira, será sempre, uma terra que recordo com nostalgia, uma aldeia hospitaleira, aprazível e maravilhosa, deste nosso lindo Portugal.

Uma aldeia, da qual também tenho excelentes recordações, é a terra da minha mãe, Carvalhal do Sapo.
Passei ali muitos e agradáveis momentos, em casa dos meus padrinhos e da minha avó, eram pessoas dum afecto inexcedível, especialmente a minha madrinha, que apesar das canseiras do campo, da casa e dos muitos filhos - meus primos -, ainda tinha tempo para me proporcionar todas as atenções e me dar todo o seu carinho.
Na minha memória, fica sempre a perdurar uma lembrança, quando era adolescente não gostava de carne ovina e caprina, não simpatizando assim com a chanfana, um dos pratos mais apreciados da região, confeccionado apenas em dias de festa. A minha madrinha, sabedora da situação, dava-me em troca uns enormes nacos de presunto, do mais saboroso que comi em toda a minha vida.
Carvalhal foi, em tempos idos, uma terra com muita gente e muita alegria, em qualquer dia e em qualquer lugar, especialmente à noitinha, junto à taberna do meu padrinho, se ouvia uma concertina e se organizava um bailarico. Todos os anos a festa do Santo Padroeiro, São João, era algo de inesquecível, chegava gente de todo o lado, de Lisboa vinham os filhos da terra, das aldeias vizinhas era um cortejo de forasteiros, atraídos por um evento dos mais apreciados e concorridos da Beira Serra.
Eram três dias de permanente animação, a parte mais respeitosa, a religiosa, composta de missa e procissão, e a parte profana, em permanente convívio, com jogos, brincadeiras e bailes de arrasar até raiar o novo dia. Era um deslumbre o Largo da Eira repleto de gente, em que tudo dançava, novos e velhos, eram necessárias duas rodas, ao som do tradicional fado mandado.



XIII – SERVIÇO MILITAR

Aos 19 anos fui à inspecção para o serviço militar, em Arganil.
Era uma época em que quase ninguém ficava livre, só com enormes ‘cunhas’ – sempre as houve -, ou grave deficiência física.

Era o tempo da guerra colonial, com a ida da juventude em força para Angola, Moçambique e Guiné, uma guerra sem sentido, já todos os países, como potências colonialistas, tinham dado a independência aos povos que subjugaram durante séculos e somente Portugal, a viver um regime ditatorial, sacrificou uma geração de jovens, separando famílias e interrompendo carreiras, com o horror do cortejo de mortos e estropiados, causando feridas na sociedade e na alma, ainda hoje não totalmente curadas.

Mas, retomando a inspecção, aquilo resumia-se a um exame vexatório, com um oficial médico e outros auxiliares tropas, a mandarem o pessoal fazer fila, todos nus, para Suas Excelências verificarem da nossa sanidade física. Os argumentos da falta de vista, de ouvido, ser coxo ou outras situações similares, eram puramente ignorados.
Depois do pessoal inspeccionado e enquanto nos vestíamos, era o gozo das brincadeiras, das apalpadelas amaricadas e dos ditos espirituosos, o almoço em conjunto e, para culminar o dia, umas bebedeiras monumentais, na comemoração do carimbo: ‘apurado para todo o serviço militar’!

Assentei praça no RAL1, em Sacavém, em Abril de 1970, tinha 20 anos.
A recruta era de 3 meses, tempos difíceis, disciplina férrea, comida péssima, recordo uma refeição em que nos serviram frango podre e quando houve um movimento de revolta, com a eminência dum levantamento de rancho, fomos ameaçados de prisão por um oficial, de pistola na mão.
Era um ambiente hostil, mesmo de medo, treinos e marchas a qualquer hora, de dia ou noite e em quaisquer condições atmosféricas. Lembro um treino num dia de vendaval, num dia em que houve inúmeras árvores partidas e algumas arrancadas em Lisboa e nós, todos encharcados, a chafurdar na lama. Tempos conturbados estes, a exigir a abdicação da própria personalidade.

Depois da recruta, a especialidade. Haviam uns testes psicotécnicos, que aliados à nossa profissão, ditavam o futuro militar. No meu caso e como era escriturário civil, não houve desvirtuamento no caminho, fui para escriturário, sendo transferido para Leiria, para o RAL4, onde estive mais 3 meses.
A especialidade, era o continuar dos treinos militares, agora já com a componente mais específica, ou seja a escrita, escrever à máquina – nesses tempos não havia computadores -, aprender a ler cartas militares e outros quesitos, já um pouco distantes na minha memória.

Nessa ocasião, em plena guerra colonial, o anseio de todos nós, depois do curso, era ser colocado num qualquer quartel ou repartição do Continente, para isso era necessário ficar, pelo menos, classificado até metade do curso, mais concretamente, dos 400 homens de cada incorporação, metade ficavam em Portugal e os restantes eram enviados para as antigas Províncias Ultramarinas, para o teatro de guerra. Não tive problemas de maior, dos 400 especialistas fiquei em 18º., tendo sido transferido para a minha primeira escolha, o antigo GCTA (Trem Auto), na Avenida de Berna, em Lisboa.
Aqui tudo foi mais fácil, fui para a secretaria, tendo como responsabilidade a feitura da Ordem de Serviço, o que fazia de manhã e de tarde ia trabalhar, ganhar uns trocos, para o meu emprego civil, na NCR, no Largo de Santa Bárbara, em Lisboa.
No inicio ainda tive de fazer alguns serviços, faxinas e guardas à noite, em guaritas, recordo um dia estar sonolento, a meio da noite, ouvir alguns barulhos e quando pergunto quem estava ali, eram colegas, que tinham ido para a borga, clandestinamente e agora estavam a saltar o muro para regressarem ao quartel. Neste tempo, 1970, estas situações eram complicadas, nunca se sabia quem estava do outro lado. Na Repartição contígua ao Quartel, o antigo DRM1, tinha havido, recentemente, um ataque à bomba, mas quem sofreu foi o indivíduo que foi colocar os explosivos, infelizmente, para ele, que morreu e felizmente para os que, eventualmente, seriam atingidos, não os soube manusear.
Depois de promovido a 1º. Cabo, responsável pela Ordem de Serviço, desarranchado e com o estatuto de lidar directamente com o Chefe da Secretaria e com o próprio Comandante, tudo foram maravilhas, com excepção dum dia em que o dito Comandante me chamou, para fazer sair na Ordem a punição dum colega e como eu estava ‘desenfiado’ foi um problema, só o Chefe da Secretaria me salvou de levar um castigo.
Passei à disponibilidade em Março de 2003, quase 3 anos, após a incorporação, com um louvor proposto pelo Comandante da Unidade e atestado pelo Chefe da Região Militar de Lisboa, como um exemplo a seguir (os louvores eram sempre iguais!).

Era um desperdício na vida dum jovem, estes longos anos ao serviço da Pátria, houve muita gente a fugir, a desertar, e houve outros que, infelizmente, como já salientei, pagaram com a vida, ficaram paraplégicos ou com traumas profundos, em consequência duma guerra injusta e sem qualquer sentido.

XIV – AMOR

Quando iniciei o serviço militar conheci uma jovem de Moscavide, terra próxima de Sacavém onde assentei praça e este encontro, no começo uma amizade igual a tantas outras, veio, mais tarde, a revelar-se o meu amor - penso que só se ama, verdadeiramente, uma vez na vida - e o lógico abandono da existência errante, de constantes e efémeras paixões, que tinha sido apanágio do meu ser.
Agora, com 23 anos, menos libertino, mais responsável no perspectivar do futuro, exercendo as funções de contabilista numa multinacional americana, com um ordenado razoável para a época, era chegado o momento de pensar no casamento, abandonar a sombra protectora dos pais e assumir a responsabilidade na construção do próprio lar.
A partir daqui, já com o compromisso assumido, a vida decorria tranquilamente, trabalho – namoro - casa, algumas escapadelas com os amigos, uns arrufos com a namorada, corolário lógico dos ajustes no contraste das personalidades, discutia-se os pormenores do matrimónio, o dia, o local, os convidados, a casa, a decoração e todos os pormenores inerentes ao acto.

XV – 25 DE ABRIL

Esta era uma época conturbada, tanto no aspecto político, como no militar, com constantes notícias de contestação civil e sublevações de tropas, que culminou, primeiro, a 16 de Março de 1974, no levantamento das Caldas da Rainha, este ainda abortado pelas forças fiéis ao Regime e mais tarde, em 25 de Abril desse mesmo ano, no movimento dos Capitães, este sim já com pleno êxito e que pôs fim a uma ditadura de quase 50 anos.
Nesse dia fui acordado pelo meu pai – ele trabalhava, durante a madrugada, no antigo jornal ‘O Século’ -, cerca das seis horas da manhã, com a novidade:
- Carlos levanta-te, está em curso um golpe militar e parece que desta vez a coisa é a sério!
Todo o povo andava à espera de algo, contudo, não se esperava tão cedo depois de ter sido abortada a sublevação das Caldas.

Foi uma data inolvidável o 25 de Abril! Passei o dia de rádio ao ouvido, pelas ruas do Bairro Alto, a presenciar, do miradouro de Santa Catarina, o movimento dos barcos de guerra no Tejo e mais tarde, no Largo do Carmo, assisti à queda do Regime, com a rendição das últimas forças militares fiéis e a deposição do Chefe do Governo, Marcelo Caetano.
A partir deste momento foi um extravasar de emoções: uma Nação reprimida, durante décadas, a manifestar o seu júbilo, a sua alegria, a primeira sensação de viver em liberdade…
Não vou esquecer, jamais, a esperança que vi nos olhos do povo e que teve o seu epílogo na grandiosa manifestação do 1º de Maio, cantava-se em uníssono:
- O povo unido jamais será vencido…
A partir daqui foram muitos os erros, cometeram-se muitos excessos em nome da liberdade, houve muitos oportunismos, o poder passou para os militares, os partidos principiaram a movimentar-se, as pessoas foram manipuladas, o povo dividiu-se em ‘progressistas’ e ‘fascistas’, a guerra civil esteve eminente. Felizmente houve o bom senso suficiente para evitar um drama maior e Portugal, aos poucos, soube encontrar um rumo democrático, de liberdade não tutelada.

XVI – CASAMENTO

Casei em 3 de Agosto de 1974, poucos dias após ter feito 25 anos, com a Maria Lisete, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.

Quinta do Anjo, 13 de Junho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves