segunda-feira, 26 de outubro de 2009

D I S S O N Â N C I A - MUSA NUA

Tu,
És para mim:
A luz do meu amanhecer;
As tardes cheias da minha solidão;
A claridade do meu crepúsculo;
O dia da minha noite;
O sonho das minhas estrelas;
A esperança da minha natureza;
A rosa nua do meu harém de flores;
A bonança das minhas angústias;
O desaguar da minha inquietude;
O abraço do meu desassossego;
O beijo quente do meu arrefecer…
(Palavras triviais? Não, sentimentos meus!)

Eu,
Sou para ti:
A véspera do teu dia;
A escuridão das tuas manhãs;
Vento uivante;
Tempestade;
Pedra, em que tropeças no quotidiano;
Rio, que transborda e sai das margens;
Mar encapelado;
A flauta desafinada da tua sinfonia;
O trapo velho que deitas fora;
Pintura abstracta;
Natureza morta...
(Palavras tuas? Não, nudez da tua alma!)

Sim,
És, para mim,
A minha musa, a minha poesia, a minha paixão…
Sou, para ti,
Apenas um homem!
(Dissonância…)


Quinta do Anjo, 25 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

TRAVESSAS (17) - O PALHEIRO DA LOMBA



Palheiro!
As pessoas da terra chamavam-me, de forma depreciativa, palheiro e algumas desciam ainda mais de nível e de forma injuriosa davam-me o nome de curral.
Sim, sabia, não era uma casa de habitação igual a outras que via na aldeia, onde moravam pessoas e se ouvia o riso das crianças, mas também não era nenhuma barraca, nenhuma forma decrépita que causasse angustia ou dó.
Era uma casa bem talhada, feita de pedra de xisto e com lousas a servir de telha, agora até me sentia importante, estavam em moda as casas com pedra de xisto à vista, neste meu concelho existe mesmo uma terra – Piodão -, em que, na generalidade, as habitações são deste estilo.
Estava num local privilegiado, um lugar altaneiro à aldeia, já na encosta da subida para a serra, dali se avistava uma paisagem deslumbrante, natureza em todo o seu encanto, aldeias dispersas e ao longe a serra do Caramulo.

Sentia que era uma casa igual a tantas outras: um rés-do-chão que servia de guarida às ovelhas e cabras, separadas por um tabique e um primeiro - andar, onde se guardava de tudo um pouco, coisas do campo, como ferramentas, cortiços para as abelhas, temporariamente algumas colheitas e, essencialmente, palha para os animais se alimentarem nos tristes dias de Outono - Inverno, uma época em que, devido às inclemências do clima, não havia possibilidades dos animais saírem para pastar.

Devido ao local ermo em que me encontrava, sentia uma certa solidão, especialmente nas longas noites de Inverno, os meus donos via-os apenas duas ou três vezes por dia, nos momentos em que eles vinham alimentar os animais.
Por vezes, dava guarida a pessoas que eram apanhadas desprevenidas nas incidências da chuva inesperada ou nas tardes de trovoadas.
Recordo uma vez, seria Maio, em que uma violenta trovoada, com um ribombar assustador, relâmpagos, raios e um vendaval de chuva, me fez tremer de tal modo os alicerces, que cheguei a pensar no fim. Lembra-me, olhar os pinheiros da Fonte que, apesar de gigantes no tamanho, tremiam como varas verdes, cobardemente, no enfrentar da fúria da natureza.
As únicas companhias permanentes eram o gado no andar de baixo e em cima uns simpáticos ratos, que toda a noite faziam barulho na procura de algo para se alimentarem, umas osgas que comiam alguns insectos, uns pardais, que faziam o ninho nas frestas salientes do telhado e também uns animais voadores esquisitos, que somente apareciam à noite e a que chamavam morcegos.

Na Primavera – Verão, tudo era mais agradável, passavam por ali todas as pessoas da aldeia, na azáfama das sementeiras, das regas e da apanha das colheitas. Também era caminho, de passagem obrigatória, dos adolescentes e jovens, quando iam à serra apanhar mato para os animais, e lenha para as fogueiras.
Estes jovens, não raras vezes, utilizavam a palha, como se fosse lençóis em fofa cama, contando com a minha hospitalidade e o meu benevolente olhar, em contraste com a indignação dos meus donos, pois eles amassavam e espalhavam a palha toda, nas ardências dos seus movimentos. Os seus gemidos e ais não se assemelhavam nada aos uivos lamentosos do vento zangado, eram mais doces e profundos, assim como que uma suave brisa.
Igualmente, na loja, havia um carneiro e um chibo que, pelo que ouvia, faziam patifarias às suas companheiras, porque eu ouvia-as gritar de excitação ou de susto, não sei.

Com que encanto acordava nas manhãs, ouvindo toda a vida próxima, os animais pedindo comida, o chilrear dos passarinhos, o zumbir de todo o estilo de insectos, o aroma a terra orvalhada, a brisa fresca, o perfume das flores, o sol despontando sereno por cima da minha janela…

Adorava os dias lindos, os brilhantes dias de sol, até a minha silhueta ficava mais bonita, gostava de ouvir as gentes nas suas cantigas ao desafio, ficava feliz quando os passarinhos pousavam nos meus beirais, delirava com o cantar dum melro tenor, que cantava na cerejeira em frente e que todos os anos fazia o ninho numa silveira que havia ao lado dum vizinho olival.

Gostava, igualmente, das noites de luar, aqueles lindos luares de Agosto e Janeiro, em que a Lua surgia na serra do Vieiro, primeiro tímida e depois em todo o seu esplendor e logo a noite era dia, ocasião dos romantismos e das paixões, dos beijos e dos suspiros, que o meu ouvido conseguia captar na calada da noite.
Nesses momentos, o luar reflectia a sombra elegante da minha estrutura, e esta visão fazia-me sentir menos só, parecia que tinha ao lado uma alma gémea, e suspirava, sonhava como os mortais.

Nunca tive conhecimento da minha idade, permaneci sempre igual, nunca os meus donos se preocuparam em dar-me um aspecto mais belo, deste modo fui envelhecendo, comecei a sentir que o vento passava mais facilmente pelas frestas existentes, algumas traves estavam a ficar esburacadas devido ao bicho da madeira, o chão principiava a ter buracos, as tábuas a apodrecer, aparecia o musgo e a hera a tapar a beleza do meu corpo…

Já tinha conhecido duas ou três gerações de donos e os actuais também já não eram muito novos, assim foi sem surpresa que um dia apareceu um homem estranho para vir buscar o gado, pela conversa, tive conhecimento de que os animais tinham sido vendidos e a casa ia ficar somente para arrecadação, melhor dizendo, abandonada!
Esta situação causou-me uma certa perturbação, tinha-me habituado à companhia das cabras e ovelhas, mais do que propriamente à dos humanos, que via esporadicamente. Assim, a partir deste momento e quando constatei que, igualmente, só muito raramente por ali passavam pessoas - a aldeia tinha-se despovoado, uns tinham morrido e outros tinham partido para terras distantes -, apossou-se de mim a angustia da desistência e da solidão, as teias de aranha invadiam as paredes e até os ratos aos poucos foram desaparecendo.

Um dia, acordei, como toda a natureza envolvente, na sensação do ocaso próximo. Olhei, todo o horizonte estava cinzento, o fumo tapava-me a visão e logo de seguida, vindo de diversas frentes, surgiu o clarão vermelho do incêndio, toda a natureza encurralada na iminência do desastre, que imediatamente adivinhei. Primeiro assisti à destruição da serra, do mato e das árvores, os soutos de castanheiro foram a seguir e quando as línguas de fogo apareceram vindas do Curral Novo, da Fonte e do Alqueve, nesse momento já o fumo me tinha anestesiado e aguardava em calma sonolência a estocada final, qual touro amansado, em plena arena.

Em tempos, quando era mais nova, os meus donos tinham falado numa peça de teatro que eles afirmavam ter um final comovente, que dizia: ‘as árvores morrem de pé’! E nesses instantes finais verifiquei a verdade desta expressão, via todas as árvores, em redor, arderem quais fogueiras de S. João, mas os esqueletos fumegantes não caiam, ficavam de pé.
Nesta grandeza da glória na morte, também eu pensei, já delirando, que tinha de morrer de pé, e assim quando o fogo me entrou pelas entranhas, começando pelas portas e janelas, pelas traves de madeira e pelo soalho já esburacado, passando para a loja, eu sabia que tinha de resistir nas paredes, terminava os meus dias esventrada, um oco vazio, mas com as paredes hirtas, quais sentinelas vigilantes, morria, mas morria como as árvores… de pé!


Travessas - Arganil, 20 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

D E S I L U S Ã O

Sim,
Dizias gostar de mim.
Do meu ser,
De me ler,
Da serra
Da minha terra…

Eu,
Sentia-me teu.
Esquecia a solidão
Nas ardências da paixão,
Braseiro a arder
No entardecer.

Mas…

Não,
É tudo ilusão.
Gostas da pureza
Da minha natureza,
Deixo-te o lamento
No grito do vento!


Quinta do Anjo, 16 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

R E T R A T O - A MINHA SERRA E TU!

Os matos agrestes do alto da serra,
São as ondas dos caracóis do teu cabelo, cor de vinha outonal,
Onde as minhas mãos se esquecem no desbravar do desconhecido;

O lago existente no alto da montanha,
Reflecte o belo dos teus olhos, cor de castanha, com reflexos de terra,
Em que me meu olhar se incendeia, no fogo do entardecer;

O pico no centro do monte,
É a pirâmide colocada na tua face,
Nela me extasio na contemplação do feitiço envolvente;

A vereda, abaixo dum socalco,
É a imagem da tua boca, o fascínio dos teus lábios, cor de medronho maduro,
Na sua doçura de mel, nunca consigo saciar a fome e sinto o tormento da sede abrasar todo o meu ser;

Na distância, aquela penedia,
Mostra o teu rosto de madona, num quadro de génio pintor,
Em que me deleito… vejo uma imagem de Deusa, na visão do Olimpo;

…E aquela garganta profunda na montanha,
Não será a tua?
De garça – dizem – não, tua, para meu prazer, na meiguice da tua voz;

Na imagem daqueles estradões/aceiros,
Vejo os teus braços de seda,
Que me abraçam e tentam agarrar o mundo;

Nas colinas ondulantes um pouco acima do meio da serra,
Vislumbro o encanto dos teus seios,
Intumescidos de sedução e que me enlouquecem de paixão;

No espaço livre entre os montes e o vale,
Existe o selo indelével do rebento da folha,
A tua ligação ao mistério da vida;

No vale encantado, ladeado de árvores de cor outonal,
Vivo o deslumbramento do Jardim de Éden, a árvore da fruta dos desejos e o regato de águas puras e virginais,
Sou Adão, sou pecador, na visão do Paraíso;

Os montes que circundam o vale,
São o fascínio das tuas ancas,
Que parecem dançar volúpias na loucura dos meus sentidos;

Os riachos que saem do vale a caminho do mar,
São a maravilha do torneado das tuas pernas,
Nelas me afogo, na carícia da corrente;

Na visão panorâmica da serra,
O monumento és tu!

Nesta maravilha dos sentidos, vivo as minhas paixões: quando estou contigo, vejo a serra da minha terra; quando estou na minha serra, vejo-te a ti!


Quinta do Anjo, 8 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves