sexta-feira, 31 de outubro de 2008

DIARIO (2) - OUTUBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 16 de Outubro de 2008

Depois de alguns dias afastado do trabalho, regressei hoje e encontrei tudo igual: as mesmas pessoas lamentando-se, as mesmas ruas esburacadas, os habituais cães sujando os jardins, os vários carros em cima dos passeios, o imundo lixo em que tropeço a cada passo…
Na realidade uma coisa está diferente, a vida está mais velha, os dias estão mais cinzentos e há mais folhas caídas, nós não envelhecemos, apenas nos limitamos a acompanhar a vida.

Quinta do Anjo, 17 de Outubro de 2008

Há quem fique maravilhado com o por do sol, falam em romantismo, para mim é a parte mais deprimente do dia!
A alvorada, o amanhecer, em que o sol vence a escuridão da noite, é a fase mais bela da claridade solar!
Como uma criança ao nascer, o sol traz-nos, pela manhã, o brilho da ingenuidade, pureza e esperança de vida, ao meio-dia é o apogeu da existência, contemplamo-lo com a mesma adoração com que olhamos os olhos duma formosa mulher e ao fim da tarde, o por do sol, é o vermelho do fogo em que consumimos a vida, o crepúsculo do entardecer, a chegada da noite…

Quinta do Anjo, 18 de Outubro de 2008

Vi hoje uma oliveira carregada de azeitonas, já maduras, pretas, mas, espanto, todas a cair, podres!
Como é possível a natureza maltratar assim uma árvore, cujo único crime era dar algo à humanidade!
A razão, é que, felizmente, ninguém controla a natureza e se ela assim procede, na sua sabedoria, é somente para mostrar que como, na nossa ganância e estupidez, a estamos destruindo, ela vinga-se retribuindo-nos com tempestades e podridão.


Quinta do Anjo, 19 de Outubro de 2008

Outrora, o domingo, como dia de descanso, era o dia tradicional da reunião familiar, com os habituais almoços e os passeios pelos campos e cidades, era a ocasião em que se procurava no culto a purificação do espírito e da alma e era também o momento em que os namorados e apaixonados tinham oportunidade de trocarem beijos e selarem promessas de amor.
Hoje a situação alterou-se, o dia de descanso não tem data marcada, a família ou quase já não se conhece ou está mais desunida, o culto caiu em desuso, vivemos em permanente pecado, por convicção ou omissão, e os enamorados não necessitam procurar a escuridão, nem saltar a cerca, os encontros são à luz do dia em qualquer lugar e se a paixão for clandestina ou proibida, há sempre o habitual recurso da imperiosa necessidade do trabalho fora de horas.

Quinta do Anjo, 20 de Outubro de 2008

Esta noite sonhei que estava numa festa a comer e a beber, especialmente a beber muito, e, espanto, quando acordei pela manhã estava de ressaca!
Esta situação de sonhos leva-me a sugestões bem interessantes, as perturbações que causa as deambulações do psíquico pelas fronteiras da imaginação ou quem sabe, muitas vezes, de realidades ocultas ou mesmo de desejos não satisfeitos.
Quando era menino sonhei que estava a fazer xixi e acordei todo molhado, em jovem adolescente sonhei que estava a fazer amor com a namorada e acordei saciado, muitas vezes sonho que estou a ser perseguido por fantasmas ou seres demoníacos e estes pesadelos levam-me a acordar encharcado em suores frios…
De uma coisa eu tenho a certeza, nunca sonhei que me tinha saído qualquer fortuna ao jogo, nunca sonhei que estava a visitar a Muralha da China, assim como nunca sonhei que estava só, numa ilha deserta, com a “miss mundo” do momento, ou seja, cada vez sonhamos menos sonhos!

Quinta do Anjo, 21 de Outubro de 2008

São onze horas da noite e estou a apreciar o cair da chuva através da janela. As luzes dos candeeiros reflectem as gotas de água que a terra vai beber, com a mesma sofreguidão, nesta fase, com que um ébrio bebe o último copo antes do fecho da taberna.
Em frente e pelos intervalos da chuva, qual teia de aranha cerzida na vertical, vejo a serra do Louro e os seus característicos moinhos.
Gosto desta terra porque me faz lembrar a terra onde nasci: campos de cultivo, vinhas, pinheiros, mato, serras…
Serras, do Louro, da Arrábida, da Gatucha, anatomia díspar, mas serras!
É evidente que existem dissemelhanças entre a Quinta do Anjo e Travessas: aqui, a serra é o contraste na planície, na minha terra qualquer local plano é o contraste na serra!
Cada vez mais, me afirmo em contacto com a natureza! Uma casa, um escritório, uma cidade, como rotina do quotidiano, fazem-me sentir como prisioneiro, em invisível cárcere, com a consequente e urgente necessidade da procura de espaço, de cheirar a terra, de calcar mato, de ouvir os sons do campo, de extasiar os olhos no alargar de horizontes…
Dá-me mais prazer pisar uma rocha numa qualquer serra, de que pisar uma fofa alcatifa num hotel de luxo, o cantar da cotovia é, para os meus ouvidos, melhor música do que concerto em S. Carlos, assim como um medronho silvestre é doce iguaria para o meu paladar nativo…
Se um dia, por qualquer motivo, eu desaparecer, procurem-me numa qualquer imensidão do espaço, vejam se não sou aquela águia que voa livre no pico daquela serra, se não sou aquele regato de água que desliza docemente, por entre salgueiros, naquele vale verdejante…

Quinta do Anjo, 22 de Outubro de 2008

Contraste da vida: quando somos jovens deitamo-nos com uma jovem donzela, não querendo que ela adormeça; agora deitamo-nos com os nossos pequenos netos e fazemos todos os possíveis para eles adormecerem!

Quinta do Anjo, 23 de Outubro de 2008

Para mim e abstraindo o ambiente familiar, restrito e são, só há, verdadeiramente, três coisas belas na vida, aquelas que ajudam a manter viva a seiva da nossa existência: as crianças, que são o futuro, as mulheres, que são o presente e a natureza, que é o sempre!

Quinta do Anjo, 24 de Outubro de 2008

Ao chegar a casa à hora do almoço assisti a uma parte do programa de Tv/Sic, de Fátima Lopes, qualquer coisa intitulada “tertúlia cor-de-rosa”.
Presenciei e fiquei abismado, como é possível haver coisas tão execráveis em pleno século XXI! Para quem não conheça esta aberração, isto versa o tema das ‘celebridades’ da nossa praça, dos seus amores e desamores, que mudam quase todos os dias, do fulano e da fulana que dormiram juntos, quando tinham dormido no dia ou semana anterior com parceiros diferentes, de outros e outras que atraiçoam o respectivo cônjuge, etc… Tudo isto comentado e julgado por um painel de ‘famosas’ figuras, certamente generosamente pagas, com ar compenetrado e gestos doutorais, parecendo estar a prestar um importante serviço em prol da comunidade, quando apenas estão a fazer parte, também, deste mundo putrefacto da nossa sociedade dos jet 7 e quejandos.
Depois digam que o mundo da prostituição não é mais puro do que este, aí ninguém é enganado, tudo sabe para onde vai e o papel de cada actor nesse acto, enquanto neste ‘mundo cor de rosa’ tais personagens vendem-se por meia dúzia de linhas numa qualquer revista ou por aparecerem uns segundos num qualquer canal de televisão.
Na vida da prostituição apenas se aluga o corpo, na vida dos ‘famosos’, a podridão é mais deprimente, vende-se o corpo e a alma.

Quinta do Anjo, 25 de Outubro de 2008

As rugas vão-me aparecendo na face, por vezes tento passá-las a ferro, só que o ferro está sempre frio!

Quinta do Anjo, 26 de Outubro de 2008

Levanto-me de manhã cansado, a noite foi mais longa, houve mudança da hora e como o sono acorda, sensivelmente, à mesma hora, andei às voltas na cama, sem dormir, para compensar o tempo a mais.
Nunca entendi para que serve este atrasar e adiantar da hora, como se fosse possível a vida andar para trás, ou correr para a frente, de forma diferente do habitual.
Andei todo o dia a sentir que algo não estava certo, o sol estava adiantado no tempo, a fome do almoço chegou antes da hora e a noite chegou antes do anoitecer…

Quinta do Anjo, 27 de Outubro de 2008

Cada dia andamos mais sedentos de amizade, paz e amor!
Sentimos mais esta sede de tranquilidade e afecto, do que verdadeiramente dos problemas monetários, dos bens materiais, do fausto do supérfluo, ou do prazer do efémero…
A vida, todavia, ri-se dos nossos desejos, faz desaparecer os velhos amigos e esconde os novos, em vez de paz ao espírito traz-nos guerra e, quantas vezes, até o amor nos leva…
Temos de conseguir mudar a vida, o presente só tem sentido se tivermos esperança no futuro, mas, entretanto, vamos saciando a sede bebendo água inquinada!

Quinta do Anjo, 28 de Outubro de 2008

O dia hoje acordou zangado, o vento, na sua violência, leva-me o cabelo e as ideias!


Quinta do Anjo, 29 de Outubro de 2008

Não raras vezes o meu pensamento, tal como máquina do tempo, transporta-me para o futuro. Esta minha nave de esperança leva-me para locais em que, em jovem, sonhava poder estar hoje.
Este mundo actual em que vivo suscita-me muita angústia, pelas desigualdades gritantes na sociedade: o tudo, para umas elites e o pouco, ou mesmo o nada, para a maioria. Cada vez assisto a um mundo mais desigual, mais desumanizado, mais egoísta… É triste viver uma era em que só singram os ídolos de ‘pés de barro’, os gurus, os habilidosos, os vigaristas, os vendedores de ilusões… Ao lado destes, as gentes anónimas vão esgravatando na lama, procurando as migalhas que sobram do festim dos poderosos. Para uns, banquetes, fausto, carros de luxo, iates, aviões, para os outros, trabalho e a angústia do mês ter dias a mais.
É esta vida presente que eu gostaria de transformar, apagá-la da memória como apago o passado, dar realidade aos sonhos de mais justiça, fraternidade e igualdade, teleguiar para ontem esta nave do tempo, para que todos tenhamos oportunidade, ainda hoje e doravante, de sermos felizes.

Quinta do Anjo, 30 de Outubro de 2008

Há uma expressão popular que diz: ‘quanto mais alto se sobe, maior é o trambolhão’!
Eu, quanto mais subo a serra, mais fico perto do céu!

Quinta do Anjo, 31 de Outubro de 2008

‘Mais um mês passado, menos um mês de vida, na adolescência um mês parecia um ano, agora parece um dia’!
Estas expressões são o sentimento caduco dos velhos de corpo e espírito, que não acreditam que o novo mês que amanhã se inicia é mais um sinal de confiança no futuro, a vida só acaba quando desistirmos de a acompanhar!
Com o passar dos anos vamo-nos tornando egoístas, gostaríamos que o mundo ficasse parado no tempo, não pensando que assim as crianças jamais deixariam de ser crianças, que a vida ficaria parada, estagnada, o progresso interrompido, que o futuro seria sempre o presente…
Quando começamos a sentir que nos faltam dias e sobram silêncios, quando olhamos apenas para nós, quando não apreciamos a beleza, quando não sabemos amar e sonhar, estamos a antecipar o fim.
Pelo meu lado quero ver terminar muitos meses, muitos anos, quero amar, quero viver!

Quinta do Anjo, Outubro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

DIARIO (1) - SETEMBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 20 de Setembro de 2008

Hoje tive os filhos, noras e netos aqui em casa. São estes encontros, sem data marcada, que dão gosto à vida. Os netos, com as suas tropelias e com as suas solicitações, fazem-nos regredir os cabelos grisalhos e voltar a ser crianças.
O Tiago comemorava os seus quatro aninhos e quando acendeu as quatro velas, numa sala escura, parecia que o sol estava no zénite a iluminar a candura da sua figura. Quando somos crianças basta uma chispa para iluminar o mundo, quando somos velhos podem acender-se todas as tochas terrestres que o cinzento pouco se altera.

Também durante a refeição e na altura em que o agrado da comida se confunde com o prazer da conversa, tive oportunidade de aprender com um dos meus filhos a sua sapiência a propósito das entrevistas que hoje se fazem aos jovens à procura de emprego. Este meu filho trabalha numa empresa de telecomunicações e estava a seleccionar pessoal, eis a entrevista:
Uma
- que experiência tens de trabalho?
- nenhuma!
- estás contratado, não tens vícios!

Outra
- gostas de trabalhar?
- sim, gosto muito!
- aqui não tens lugar, ou estás mentindo, ou estás a enganar-te a ti próprio!


Montijo, 21 de Setembro de 2008

As cidades são aglomerados de gigantescas colmeias, enxameadas de abelhas obreiras, sem abelhas mestras, sem organização, sem imaginação…
Casas velhas, prédios novos, são esqueletos estáticos, que nos roubam o sol, nos escondem as estrelas e nos acolhem para nos comer a carne e os ossos, para não lhes fazermos concorrência na escuridão das suas sombras.
Existem urbanizações que são autênticos desertos, campos de concentração, em que nos sentimos toupeiras escavando túneis, para fugirmos da vida ingrata dos dias sempre iguais.


Quinta do Anjo, 22 de Setembro de 2008

No calendário oficial hoje é o primeiro dia do Outono. Como norma, aceitamos tudo que nos impingem como dados consumados. Damos como correcto as datas do Carnaval, da Páscoa, das estacões do ano, enfim cabeças inteligentes dizem-nos que estas datas são as certas e quem somos nós, pobres ignorantes, para as questionarmos.
Na minha opinião, o Outono já começou há muito tempo, ou será que as folhas secas que ando pisando há tantos dias são apenas o Outono da vida!
Na realidade, aceito,convictamente, que o Natal é quando o Homem
quiser e não quando querem que eu acredite que seja.


Travessas, 23 de Setembro de 2008

Vou à minha aldeia e cada vez sinto mais saudades da minha terra! Esta não é a aldeia em que nasci e que amei em toda a minha existência! As poucas pessoas passam olhando o chão, os silêncios são trovões na quietude da paisagem. Como é possível tão pouca gente não sentir necessidade do calor do próximo?
Que nostalgia, Travessas, das épocas de outrora, em que todos eram apenas uma família, em que se falava, ria, brincava, comia e bebia, tudo em sã camaradagem e pura harmonia!
O passado deve ser um cofre do qual perdemos o código e a chave, não mais se deve abrir, todavia, vou-me contradizer e, por favor, tragam-me, depressa, a chave da minha terra do antigamente, talvez possamos reaprender a viver em paz e amor.


Quinta do Anjo, 24 de Setembro de 2008

Fui visitar um familiar em Lar de Acolhimento, um mês exactamente após ter sido acometido de um AVC e agora estar acamado e paralisado.
É sempre com um misto de angústia e de resignação que efectuo estas visitas. Estas situações fazem-me reflectir sobre a ténue fronteira entre a vida e a morte, e o nada que somos na passagem por este mundo.
Para quê tanta luta e sofrimento para acabar desta forma, será que o melhor não teria sido a não existência? E Deus, tão bom, justo e misericordioso, porque razão, também na morte, aceita as desigualdades da vida!


Quinta do Anjo, 25 de Setembro de 2008

Um automóvel estava a fazer uma manobra de marcha atrás, não vendo um cão que estava tranquilo a dormir na estrada, sem saber que estava prestes a ser atropelado. Como ia a passar, reparei na cena e enxotei o animal, que imediatamente e porque não entendeu o meu gesto, que lhe salvou a existência, me quis morder. Recuei, acalmei-o e reflecti nas razões da vida: um cão que é um ser irracional tenta agredir, por instinto, quem lhe faz bem, mas quantas pessoas humanas e, aparentemente, racionais não fazem o mesmo a outras pessoas que apenas as consideraram e ajudaram ao longo da vida.
Na realidade, a melhor forma de não ter desilusões é não ter ilusões!


Montijo, 26 de Setembro de 2008

Não sei a razão porque há dias que só me apetece desaparecer! O cérebro fica vazio, as pernas pesadas, os olhos perdidos no nada, a inquietação estampada no rosto… O dia está lindo, o sol brilha, o vento é suave brisa, as pessoas passam apressadas no quotidiano do dia-a-dia e eu, absorto, nem sequer procuro conhecer os motivos da minha desesperança.


Montijo, 27 de Setembro de 2008

Desde pequeno que tenho medo das trovoadas, mais propriamente desde os meus 8-9 anos, em que, a caminho da escola, junto ao S. João, no fundo da ladeira de Travessas, caiu um raio num pinheiro a poucos metros de mim e daí este terror a esta instabilidade atmosférica.
Hoje assisti a uma situação muito igual, em que relâmpagos e raios fizeram do céu desta região uma sinfonia de cores e som, qual fogo de artificio sem controlo humano.


Montijo, 28 de Setembro de 2008

Pela derradeira vez, no aspecto profissional, estive hoje numa urbanização do Montijo, que, de tão feia e desleixada, chamei de ‘terra inóspita’.
O tempo, tal como eu, esteve cinzento e ventoso, um inicio de Outono a condizer inteiramente com a estação do ano.
O adeus na vida é sempre triste, mesmo quando se parte de um local que abominamos e do qual só temos nefastas recordações. Todavia, na penumbra do entardecer, consegui vislumbrar uma flor selvagem na paisagem agreste e isso foi orvalho para os meus olhos no momento da partida.


Quinta do Anjo, 29 de Setembro de 2008

A morte venceu uma vez mais!
Chegou pela manhã, já o galo cantava e o sono se despedia!
É sempre muito dura a luta entre a vida e a morte, no entanto, a morte no fim sai sempre vencedora!
Nunca aceitamos o término da vida e todos sabemos ser inevitável!
Paz à alma e eterna saudade…
…de ti, que também foste minha mãe!


Portimão, 30 de Setembro de 2008

O último dia do mês de Setembro foi um dia de sol, de mar calmo e céu azul. Parecia que neste dia de despedidas o tempo também queria prestar homenagem a quem nasceu e tanto amou esta terra e esta região.
Sempre achei deprimentes os velórios e as cerimónias fúnebres, penso que o melhor preito que podemos prestar a um semelhante é em vida e não naqueles momentos, em que a maioria das pessoas presentes estão somente por obrigação, para hipocritamente ficarem bem perante os familiares mais próximos e perante a sociedade.


Quinta do Anjo, Setembro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves