domingo, 30 de novembro de 2008

DIARIO (3) - NOVEMBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 1 de Novembro de 2008

Dia de homenagem aos familiares e amigos já falecidos. Dia em que vamos aos cemitérios levar um ramo de flores e recolhermo-nos, respeitosamente, perante a memória daqueles que deixaram de acompanhar a vida.
De forma inconsciente, matamos as flores para as dar aos mortos, não pensando que aquela homenagem é apenas ao vazio, que aquela pessoa já está à distância de um mundo e que quando ela partiu, a morte entrou clandestinamente no nosso corpo e aguarda, apenas, a sua vez para nos juntar de novo na eternidade.
Nunca conseguimos vencer a morte, no entanto, vamos-lhe dando sucessivas negas, só assim temos a ilusão de a vencer.


Quinta do Anjo, 2 de Novembro de 2008

Passo os dias sem fazer nada, inércia por obrigação, sempre à espera de uma chamada, de uma mensagem, ou de alguém que me faça descansar do cansaço de nada fazer.

Quinta do Anjo, 3 de Novembro de 2008

Ando numa fase da minha vida em que não consigo ouvir políticos ou falar de política!
Não se consegue descortinar nada de positivo, apenas maledicência, uns dizem que os outros fizeram mal no passado, outros que estão a fazer mal no presente, não oiço ninguém falar do que é necessário fazer no futuro para melhorar as nossas vidas.
Estes homens a quem, através do voto, entregamos os nossos destinos, o bem-estar da comunidade, falam muito em nome do povo, mas apenas se preocupam em defender interesses dúbios, pedir sempre mais sacrifícios a uma geração cansada de tudo dar e pouco receber, quando para eles o fausto é evidente: bons carros, banquetes ditos oficiais, passeios por todo o mundo, aposentação ao fim de escassos anos de funções, reformas chorudas, enfim o pior dos exemplos para quem pretende mobilização e compreensão para vencer a crise, em que permanente vamos estando mergulhados e da qual não conseguimos sair.
Um dia destes, aconteceu-me uma situação que revela toda a mentalidade mesquinha destes senhores que nos governam: um qualquer senhor ministro no seu carro oficial, deve ter-se levantado tarde, acompanhado de um cortejo de batedores da polícia a tocar sirenes e a abrir caminho por entre o trânsito congestionado das ruas da nossa capital, obrigando todos os outros carros a encostar e a deixarem aberto um corredor para S. Exa. passar! Claro, estes automobilistas não são gente, são apenas os bobos da corte dos donos deste pobre Portugal. Em alguns países, especialmente os nórdicos, os ministros andam de transportes públicos, ou de bicicleta.
O poder é autocrático, não respeita e não ouve, ou ouve apenas a própria voz.

Quinta do Anjo, 4 de Novembro de 2008

Dia de eleições nos Estados Unidos da América. Uma janela de esperança para o mundo, caso venha a ganhar Barack Obama.
Andamos todos saturados de políticos como Bush, Barroso, Putin, Hu Jintao e outros, homens que governam ou tem influência, no mundo de todos nós.
Até posso estar enganado e Obama acabar por ser igual, ou pior, do que o seu antecessor no cargo, o que no caso será extremamente difícil, no entanto, é uma situação nova, as ideias que exibe, as origens, a juventude, penso que será possível erradicar o aspecto bélico que tem sido apanágio da política dos EUA nos últimos tempos e direccionar esses gigantescos orçamentos de morte, em favor de novas políticas na assistência aos mais desfavorecidos e às diversas misérias que, infelizmente, grassam na terra, assim como uma nova política nos aspectos ambientais, uma das áreas mais importantes para as gerações futuras.
Não podemos viver sem esperança, mesmo que seja a esperança de poder sonhar.

Quinta do Anjo, 5 de Novembro de 2008

‘Yes, we can’! Ganhou Obama nos EUA!
Como uma andorinha não faz a Primavera, também não será apenas um homem a mudar o mundo, mas este slogan de convicção, faz-me acreditar que em conjunto podemos criar condições para modificar esta triste realidade em que nos vamos arrastando.
Não acredito em seres providenciais, messias, iluminados, ou outros, mas acredito em bandeiras mobilizadoras das inteligências, que permitam, no presente, descobrir novos rumos para um futuro que todos queremos melhor.
Uma pessoa só, em ambiente fechado, chega para desafiar o mundo e ter sempre razão, mas muitas pessoas juntas, em espaço aberto, constroem um mundo novo, com muita mais razão.


Quinta do Anjo, 6 de Novembro de 2008

Foi hoje publicada, no Jornal de Arganil, uma prosa que fiz de homenagem ao meu pai, falecido, faz agora 12 anos, no dia 11 de Novembro.
É um registo que faço com muita emoção, com muita saudade, cada dia sinto mais a ausência do meu velho.
Sempre que regresso à minha aldeia, Travessas, pareço ver o vulto familiar do homem que era o símbolo da terra. Todos o conheciam por ‘Acácio das Travessas’ e com que orgulho ele transportava esse nome!
O meu pai faleceu no dia de S. Martinho, normalmente um dia de clima diferente – Verão de S. Martinho -, todavia, no dia da sua partida, Deus com remorso de o ter mandado regressar prematuramente, mandou este Santo dar-nos um dia de Inverno, um dia de chuva e frio, tempo este que nos molhou os olhos e gelou a alma no momento da despedida.

Quinta do Anjo, 7 de Novembro de 2008

Há momentos na vida em que nos alimentamos de paixão, noutros alimentamo-nos de comida.

Quinta do Anjo, 8 de Novembro de 2008

Aceito perfeitamente que discordem das minhas ideias e das minhas opiniões, que o afirmem abertamente, frontalmente e sem rodeios, mesmo que sejam agressivos e mesmo violentos nas suas críticas, a liberdade de podermos dizer aquilo que pensamos e em que acreditamos, é um direito que assiste a todos. Já não aceito a mesquinhez, o dizer mal por dizer, o falar nas nossas costas, o desvirtuar do que falamos ou escrevemos, a difamação, a cobardia da inveja…
No confronto de ideias, sempre aprendo algo na diversidade de opiniões, nas calúnias, fico transtornado, incapaz de reagir, sinto-me totalmente perdido!
É verdade, muitas vezes revelo a alma a pessoas indignas da revelação.

Quinta do Anjo, 9 de Novembro de 2008

Tive há pouco de parar o carro e aguardar, pacientemente, que um rebanho de ovelhas, enquadrado por um pastor e dois cães atravessasse a estrada em que seguia.
Esta imagem fez-me lembrar as várias manifestações de pessoas em protesto, tal como ainda ontem, em Lisboa, a manifestação dos Professores.
Independentemente das razões que assistem às pessoas, para virem para as ruas reclamar direitos que julgam justos, é sempre com um misto de desencanto e tristeza que verifico seres humanos agirem exactamente igual à dos animais irracionais.
Aqui, na aldeia, um pastor e dois cães enquadram um rebanho de ovelhas e carneiros, a caminho do pasto ou do curral; ali, na cidade, meia dúzia de indivíduos enquadram uma massa humana, dizem-lhe os passos que devem dar, as palavras de ordem que devem dizer, os cartazes que devem transportar, e muitas vezes o ódio e as ofensas que devem manifestar.
Não sou contra as diversas formas de protesto, incluindo as manifestações, desde que em ambiente ordeiro e solidário, sou contra este estilo de protesto, de uma classe que vai formar os homens do amanhã e que utiliza expressões como governo de ‘bandidos’ e ‘corja de patifes’, que apresenta indivíduos engaiolados, desenhos de gosto muito duvidoso e outros mimos.
Não sei onde existe maior ‘carneirada’: se na manifestação da natureza, sempre assim desde a ancestralidade; se o seguidismo do actual, em que as pessoas não conseguem vingar as suas ideias através da inteligência e do diálogo.
Nos rebanhos de ovelhas o único perigo é aparecer um lobo disfarçado de cordeiro, nas manifestações de massas há sempre lobos disfarçados, que entram na mente das pessoas, lhe castram o espírito, os tornam dóceis presas e facilitam o aparecimento de novos messias, não divinos.

Quinta do Anjo, 10 de Novembro de 2008

Penso que vou ter dificuldade em aceitar a velhice, a decadência física da vida… É como se tentasse parar a marrada dum toiro bravo, com uma pena.

Quinta do Anjo, 11 de Novembro de 2008

Dia de São Martinho, dia das castanhas, do vinho e da água-pé!
Na minha terra, Travessas, em tempos idos comemorava-se condignamente este dia, juntando-se o povo, normalmente no largo do Cabeço, para o tradicional magusto e a prova do vinho novo, em que todos confraternizavam em franca harmonia, se brincava, contava anedotas e, de forma fraterna, todos bebiam pela mesma garrafa ou garrafão.
No actual, a voragem da vida, e a maldade dos homens, apagou as fogueiras e, hoje, apenas restam as cinzas do passado.


Quinta do Anjo, 12 de Novembro de 2008

A minha resposta a uma amiga, que ficou um pouco zangada quando lhe chamei a atenção para a necessidade de fazer ginástica, devido a alguns centímetros (‘pneus’) a mais na cintura: -- sabes, o desnível entre os montes e o vale nunca pode ser outro monte!

Quinta do Anjo, 13 de Novembro de 2008

Estou a olhar a Lua, em fase de Lua - Cheia.
É linda, a Lua, em noite límpida, em noite de estrelas!
Falamos muito do Sol, a luz do dia, o que representa para a vida, o seu calor, a poesia do amanhecer, do entardecer…
Esquecemos um pouco a Lua, a luz da noite, a igual influência em muitos aspectos da existência, como no aspecto físico, marés, colheitas, etc., o romantismo dum luar de Agosto…
Lua é vida!
Lua é paixão!
Lua é amor!
…É vida, sempre em crescendo até ao quarto minguante;
…é paixão, paixão nova, paixão crescente, paixão cheia, paixão minguante;
…é amor, os beijos apaixonados à luz do luar, o reflexo do brilho na imensidão do olhar da pessoa amada e aquela figura que vislumbramos na claridade da superfície lunar, é a imagem do nosso amor, fazendo-nos companhia, nas noites em que não podemos estar a seu lado…
Lua é o encanto da noite, a caminho do sol nascente.

Quinta do Anjo, 14 de Novembro de 2008

Passamos a existência no apeadeiro da vida esperando a chegada da felicidade, mas este comboio nunca pára nos apeadeiros.

Quinta do Anjo, 15 de Novembro de 2008

Somos um País eternamente adiado!
Protestos, greves, manifestações, é o quotidiano de Portugal, cada vez mais pequeno, cada vez mais pobre…
Em vez do diálogo, a mudez; em vez de construir, destruir; em vez de ideias, o confronto; em vez de paz, guerra; em vez de flores, pedras…
Talvez espelho dos maus governos que temos tido e das más políticas que emanam dessa situação, é ver os Portugueses cada vez mais natureza primitiva: rebanho de carneiros, pássaros cantantes e lobos uivantes, é o nosso regresso às origens, imitando, de forma agressiva a pureza da vida.
Não procuramos ideias novas, apenas ajustes de contas do passado.

Quinta do Anjo, 16 de Novembro de 2008

Em tempos passados, na longa noite da nossa escuridão, o povo vivia, essencialmente, na sonolência que lhe dava o regime, do ópio dos 3-FFF´s: Fátima, Fado e Futebol.
Mais tarde e com o advento da democracia, a situação pouco se alterou, apenas se mudou o ‘F de fado’, para o ‘P de politica’, ficando assim agora a sigla: FFP, Fátima, Futebol e Política.
Outrora, Fátima era 13 de Maio e 13 de Outubro, agora é dia 13 de todos os meses; futebol era aos domingos (nacional) e às quartas (internacional), agora é às sextas, sábados, domingos e segundas (nacional) e terças, quartas e quintas (internacional); o fado era nas casas próprias, normalmente à noite, agora a política é a todas as horas, em casa, no café, no rádio e nas televisões.
Mudam-se os tempos, a droga é a mesma, só que o povo precisa de mais quantidade para conseguir levitar.

Quinta do Anjo, 17 de Novembro de 2008

Oiço falar as pessoas, muitas delas com esperança e cheias de boas intenções.
O problema é que semeiam essas boas intenções na areia da praia, regadas com água do mar!

Lisboa, 18 de Novembro de 2008

Sempre que, por qualquer motivo, tenho de ir a Lisboa sinto-me nervoso e angustiado.
Não sei verdadeiramente a razão deste estado de alma, até porque trabalhei na capital durante quatro décadas e conheço quase de olhos fechados todos os locais, dos mais deprimentes aos mais belos e típicos.
Lisboa está uma cidade decadente, triste, edifícios velhos, alguns entaipados, a precisar de urgentes obras, só residem aqui pessoas envelhecidas e sombrias e as outras pessoas que aqui trabalham, circulam no quotidiano da correria, do stress, das filas de automóveis, de apitos e impropérios…
O centro da cidade – a Baixa -, é um retiro de vendedores tipo ‘time-sharing’, é pedintes, é empregados de restaurante a vender almoços ‘a la carte’ em plena rua, é uma miscelânea de apátridas, ou abandonados, de raças, religiões e credos, é droga em pleno dia, é lixo a cada passo…
Há uma coisa que me continua a fascinar nesta cidade: a zona ribeirinha, o rio Tejo, o seu desaguar de esperança, o contraste com o nosso desespero, que nunca desagua.
Em tudo o resto, Lisboa, é noite em pleno dia!

Quinta do Anjo, 19 de Novembro de 2008

A natureza e o futuro são a esperança da vida: a natureza rejuvenesce todos os dias, é a eternidade; o futuro é a renovação do presente, é a confiança.
Não saber olhar a natureza e não ter esperança no futuro, é não saber onde termina a sombra e começa a luz, é andar sempre no presente a olhar o passado, é ser velho em qualquer idade…
No destino da humanidade há sempre um amanhã de esperança, e também a natureza, na sua pureza, recusa dar-nos símbolos de fatal inquietude, dificilmente encontramos flores pretas.

Quinta do Anjo, 20 de Novembro de 2008

Ao desfolhar hoje uma margarida/malmequer, saiu-me a pétala ‘bem-me-quer, muito’.
Na rotina do quotidiano, um momento de enlevo, um momento de paixão…
Nem todos os dias me saem ‘mal-me-queres’ no desfolhar da vida!

Quinta do Anjo, 21 de Novembro de 2008

Há um ditado, ou uma máxima, que diz: a realização plena do homem é plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro.
Se isto correspondesse a alguma realidade, eu seria um homem realizado!
Durante toda a minha vida, plantei muitas árvores, já tive dois filhos e se não escrevi um livro, escrevi muita prosa, a qual compilada, daria muitos livros.
É óbvio que isto é ditado e não aceito, de forma alguma, máximas que querem que acredite.
Nunca me hei-de considerar um ser realizado, até à hora da partida vou ser sempre um ser inquieto!
Como posso sentir-me realizado se faço parte dum mundo, em que há guerras, com milhões de inocentes mortos, em que parte da humanidade passa fome, em que pessoas vivem debaixo de pontes e em barracas, em que crianças andam nuas por não terem roupa, em que se destrói a natureza, por maldade ou com a fobia do lucro, em que armas letais ameaçam a extinção da espécie humana…
Alguém pode viver de consciência tranquila, com todo este estado de coisas e dizer-se pessoa realizada? Só seres anormais, ignorantes, estupidificados, nababos e outras escórias humanas, podem aceitar o ignóbil sem um assomo de revolta, de desassossego…
Não, nesta vida, nunca serei um homem realizado, sou mais um ser angustiado.

Quinta do Anjo, 22 de Novembro de 2008

O mundo hoje é das mulheres!
Esta frase define uma realidade, a ascensão das mulheres em todas as áreas da vida: a coragem e firmeza no aspecto familiar, a competência no trabalho, a dedicação e aplicação nos estudos, a autoridade e personalidade na direcção de equipas e empresas, a inteligência, a perspicácia e a perseverança, enfim, atributos a que actualmente fazemos justiça e que, outrora - e infelizmente ainda hoje em alguns pontos do Globo -, se desprezava, no sentimento machista do homem inteligente e dominador.
Também é verdade que ainda agora, muitas mulheres usam o corpo como objecto sexual, não só na prostituição, mas igualmente na publicidade e demonstração de produtos e outras cativam os homens como Eva seduziu Adão no Jardim de Éden.
A mulher é beleza, é paixão, é a obsessão dos homens, a obra-prima de Deus…
Quando era jovem dizia que as mulheres só me venciam, despindo-se…Hoje basta um olhar e fico logo vencido!

Quinta do Anjo, 23 de Novembro de 2008

Como pode, na nossa mente, um dia de Sol, linearmente igual, ser de manhã radiosa luz e de tarde angustiantes brumas.
Na verdade, o mais significativo do nosso espírito não vem à luz do dia.

Quinta do Anjo, 24 de Novembro de 2008

Há tempos, na Urbanização onde trabalho, uma árvore secou e um colega meu plantou uma nova nesse local.
A árvore depressa cresceu e alguns ramos mais frondosos estavam a dificultar a passagem das pessoas pelo passeio. Passados alguns dias passou por ali um indivíduo que, sem mais delongas, com uma moto - serra, decapitou literalmente a planta e todos os seus ramos, o que lhe ocasionou a morte.
Como é possível uma pessoa ter instintos tão selváticos, o lógico seria cortar os ramos que estorvavam e deixar a árvore e a natureza cumprirem o seu destino.
Na iniquidade e maldade do homem encontramos as razões para a inconstância dos elementos da natureza e o abastardar do mundo.

Quinta do Anjo, 25 de Novembro de 2008

Dia da comemoração de mais um golpe ou contra – golpe da nossa revolução de Abril, mais concretamente a fase final do PREC (processo revolucionário em curso).
Esta acção marcou o fim da instabilidade que se vivia em Portugal, uma fase em que se cometeram muitos erros, mas a verdade é que sem a experiência dos erros não há verdadeiras certezas, foi também o regresso dos militares aos quartéis - nunca gostei de militares na rua -, e foi, verdadeiramente, o dealbar da democracia, não tutelada, no País.
Podemos não estar, hoje, como gostaríamos, no entanto, só de má fé se pode dizer que não houve uma melhoria enorme, em todos os aspectos, na condição de vida dos Portugueses.
Esta data pode ter muitas leituras, mas como nunca gostei de ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, penso que foi um dia importante para a liberdade em Portugal.

Quinta do Anjo, 26 de Novembro de 2008

Estou a ver televisão e uma figura política que está a falar faz-me lembrar o passado no presente, sem qualquer esperança no futuro.

Jardia/Pinhal Novo, 27 de Novembro de 2008

Fui jantar a um restaurante que tem um espaço típico, ou seja uma antiga adega restaurada, em que ainda podemos ver os antigos utensílios necessários a uma adega tradicional dos velhos tempos. É um local agradável e romântico, a que não podia faltar a tradicional lareira para dar ainda mais calor a um ambiente já por si poético.
Por vezes é necessário avivar as chamas do amor, para evitar que a lareira desvaneça ou mesmo se venha a apagar.

Quinta do Anjo, 28 de Novembro de 2008

Às sextas-feiras, é um dos dias que tenho marcado para falar com a minha mãe, utente do Lar da Misericórdia de Arganil.
É um dia de natural alegria, ter oportunidade de ouvir a voz de alguém que me é querido, mas é, também, um dia de ansiedade no saber do seu estado de saúde, do seu estado emocional, como decorreu a semana…
Outrora, com famílias mais numerosas e a viverem quase em comunhão de bens e afectos, não havia necessidade destes afastamentos; hoje, com a modificação dos hábitos de vida, com a dispersão da família, com a obrigação do trabalho fora de portas, é um lugar-comum os mais velhos passarem o final das suas existências nestes ambientes fechados, situação muitas vezes incompreendida e não bem aceite, por quem sempre viveu em contacto com a natureza ou em ambientes mais arejados.
Ninguém gosta de andar empurrado e ver pelos olhos dos outros.

Quinta do Anjo, 29 de Novembro de 2008

Vejo o Outono em toda a sua amplitude: árvores despidas, folhas secas a voar em todas as direcções, céu cinzento, vento fugidio, chuva fria, por vezes granizo, decadência…
A natureza não foi pródiga na inspiração do Outono!
É a estação do ano que me inspira mais melancolia! Não é fácil aceitar a mudança dos radiosos dias de Verão para este decrépito Outono, assim como é nostálgica a passagem da exuberância, para o declínio da vida.
Como são semelhantes as estações do ano e as estações da vida! Em ambas, é como uma corrida de estafetas, sempre a passar o testemunho, só que enquanto as estações do ano, em ciclos iguais, recebem e passam o testemunho, as estações da vida nunca repetem a passagem do testemunho.

Quinta do Anjo, 30 de Novembro de 2008

Tubo bem?
É uma frase banal, que dizemos todos os dias, um lugar-comum, uma frase hipócrita.
Como é possível estar tudo bem na vida de qualquer pessoa!
Ainda há momentos estava a fazer esta mesma pergunta a uma pessoa amiga, quando me recordei que o marido tinha falecido há pouco mais de um mês.
Construímos na vida uma muralha de trivialidades, que não ultrapassamos e não queremos que os outros atravessem, procuramos o frívolo e o acessório das coisas, nunca o essencial.
Também, é verdade, que quando tentamos sair das frases feitas e queremos ser originais, ninguém nos compreende!

Quinta do Anjo, Novembro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

TRAVESSAS (13) - 'Acácio das Travessas' - 12 Anos de Saúdade

Partir!
Saudade!
Duas palavras que exprimem uma despedida, uma nostalgia, um sentimento de dor!

Partiste, meu pai, sem te despedires, foste ingrato, ires embora quando mais tínhamos necessidade de ti.

Saudade, pai, da tua presença amiga, da sabedoria dos teus conselhos, da fraternidade que sabias transmitir à família e aos amigos.

Partiste, levaste contigo um pouco de nós, assim como levaste a tua terra, Travessas, terra que tanto amavas.

Saudade, da tua jovialidade, da irrequietude, da confraternização, das festas, do convívio em qualquer lugar, do lançar do foguete mesmo que fosse necessário inventar pretexto…

Partiste, faz agora doze anos, muitos anos de ausência, deixaste um vazio irreparável, podias ter partido mais tarde, com a tua maneira de ser, ainda hoje eras jovem.

Saudade, dos passeios que dávamos pelos campos, da tua alegria quando mostravas um novo enxame de abelhas, no nascimento duma vinha com nova casta, na floração duma jovem planta, no êxito duma enxertia feita em ramo de árvore bravia…

Partiste, deixaste uma terra abandonada, as silvas e as ervas daninhas ocuparam o espaço dos campos verdejantes, as vozes passaram a silêncios, as águas, outrora cristalinas e puras, passaram a turvas e inquinadas, os pássaros ou desapareceram ou ficaram mudos, a natureza ficou mais triste, mais inquieta, deixaste uma terra órfã…

Saudade, da tua esperança no futuro - nunca te ouvi falar muito do passado -, no acreditar da juventude e das gerações vindouras, na convicção de que no presente estamos a semear as raízes para um amanhã que todos queremos melhor.

Partiste, calou-se a tua voz das cantigas ao desafio, sempre o primeiro a aparecer quando se ouvia uma guitarra ou uma concertina, sempre o ultimo a abandonar o despique, nesses momentos genuínos dos artistas das nossas aldeias.

Saudade, da tua eterna juventude, as crianças gostavam de ti, porque ao pé delas também eras criança, as brincadeiras, as anedotas, o parceiro de qualquer jogo, o rebolar de pedras por uma encosta, o dançar trapalhão numa qualquer festa…

Partiste, deixaste um mundo a separar-nos, mas paraste no tempo e nós continuamos a acompanhar a vida, amanhã, um dia destes, vamos alcançar-te e juntos, de novo, viver a eternidade.

Saudade, de todos que te amavam, dos campos que ficaram na solidão do vazio… As lágrimas são lagos no nosso olhar, a natureza transforma em orvalhada o grito da tua ausência…

Partiste… eterna saudade!

Até amanhã, meu pai!


Quinta do Anjo, 1 de Novembro de 2008

Carlos Manuel F. Gonçalves

Mail: carlos.mgoncalves49@gmail.com
Blog: http://travessas.blogspot.com
Youtube: http://youtube.com/user/camane49

(Jornal de Arganil nº. 4170 de 6 de Novembro de 2008)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

DIARIO (2) - OUTUBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 16 de Outubro de 2008

Depois de alguns dias afastado do trabalho, regressei hoje e encontrei tudo igual: as mesmas pessoas lamentando-se, as mesmas ruas esburacadas, os habituais cães sujando os jardins, os vários carros em cima dos passeios, o imundo lixo em que tropeço a cada passo…
Na realidade uma coisa está diferente, a vida está mais velha, os dias estão mais cinzentos e há mais folhas caídas, nós não envelhecemos, apenas nos limitamos a acompanhar a vida.

Quinta do Anjo, 17 de Outubro de 2008

Há quem fique maravilhado com o por do sol, falam em romantismo, para mim é a parte mais deprimente do dia!
A alvorada, o amanhecer, em que o sol vence a escuridão da noite, é a fase mais bela da claridade solar!
Como uma criança ao nascer, o sol traz-nos, pela manhã, o brilho da ingenuidade, pureza e esperança de vida, ao meio-dia é o apogeu da existência, contemplamo-lo com a mesma adoração com que olhamos os olhos duma formosa mulher e ao fim da tarde, o por do sol, é o vermelho do fogo em que consumimos a vida, o crepúsculo do entardecer, a chegada da noite…

Quinta do Anjo, 18 de Outubro de 2008

Vi hoje uma oliveira carregada de azeitonas, já maduras, pretas, mas, espanto, todas a cair, podres!
Como é possível a natureza maltratar assim uma árvore, cujo único crime era dar algo à humanidade!
A razão, é que, felizmente, ninguém controla a natureza e se ela assim procede, na sua sabedoria, é somente para mostrar que como, na nossa ganância e estupidez, a estamos destruindo, ela vinga-se retribuindo-nos com tempestades e podridão.


Quinta do Anjo, 19 de Outubro de 2008

Outrora, o domingo, como dia de descanso, era o dia tradicional da reunião familiar, com os habituais almoços e os passeios pelos campos e cidades, era a ocasião em que se procurava no culto a purificação do espírito e da alma e era também o momento em que os namorados e apaixonados tinham oportunidade de trocarem beijos e selarem promessas de amor.
Hoje a situação alterou-se, o dia de descanso não tem data marcada, a família ou quase já não se conhece ou está mais desunida, o culto caiu em desuso, vivemos em permanente pecado, por convicção ou omissão, e os enamorados não necessitam procurar a escuridão, nem saltar a cerca, os encontros são à luz do dia em qualquer lugar e se a paixão for clandestina ou proibida, há sempre o habitual recurso da imperiosa necessidade do trabalho fora de horas.

Quinta do Anjo, 20 de Outubro de 2008

Esta noite sonhei que estava numa festa a comer e a beber, especialmente a beber muito, e, espanto, quando acordei pela manhã estava de ressaca!
Esta situação de sonhos leva-me a sugestões bem interessantes, as perturbações que causa as deambulações do psíquico pelas fronteiras da imaginação ou quem sabe, muitas vezes, de realidades ocultas ou mesmo de desejos não satisfeitos.
Quando era menino sonhei que estava a fazer xixi e acordei todo molhado, em jovem adolescente sonhei que estava a fazer amor com a namorada e acordei saciado, muitas vezes sonho que estou a ser perseguido por fantasmas ou seres demoníacos e estes pesadelos levam-me a acordar encharcado em suores frios…
De uma coisa eu tenho a certeza, nunca sonhei que me tinha saído qualquer fortuna ao jogo, nunca sonhei que estava a visitar a Muralha da China, assim como nunca sonhei que estava só, numa ilha deserta, com a “miss mundo” do momento, ou seja, cada vez sonhamos menos sonhos!

Quinta do Anjo, 21 de Outubro de 2008

São onze horas da noite e estou a apreciar o cair da chuva através da janela. As luzes dos candeeiros reflectem as gotas de água que a terra vai beber, com a mesma sofreguidão, nesta fase, com que um ébrio bebe o último copo antes do fecho da taberna.
Em frente e pelos intervalos da chuva, qual teia de aranha cerzida na vertical, vejo a serra do Louro e os seus característicos moinhos.
Gosto desta terra porque me faz lembrar a terra onde nasci: campos de cultivo, vinhas, pinheiros, mato, serras…
Serras, do Louro, da Arrábida, da Gatucha, anatomia díspar, mas serras!
É evidente que existem dissemelhanças entre a Quinta do Anjo e Travessas: aqui, a serra é o contraste na planície, na minha terra qualquer local plano é o contraste na serra!
Cada vez mais, me afirmo em contacto com a natureza! Uma casa, um escritório, uma cidade, como rotina do quotidiano, fazem-me sentir como prisioneiro, em invisível cárcere, com a consequente e urgente necessidade da procura de espaço, de cheirar a terra, de calcar mato, de ouvir os sons do campo, de extasiar os olhos no alargar de horizontes…
Dá-me mais prazer pisar uma rocha numa qualquer serra, de que pisar uma fofa alcatifa num hotel de luxo, o cantar da cotovia é, para os meus ouvidos, melhor música do que concerto em S. Carlos, assim como um medronho silvestre é doce iguaria para o meu paladar nativo…
Se um dia, por qualquer motivo, eu desaparecer, procurem-me numa qualquer imensidão do espaço, vejam se não sou aquela águia que voa livre no pico daquela serra, se não sou aquele regato de água que desliza docemente, por entre salgueiros, naquele vale verdejante…

Quinta do Anjo, 22 de Outubro de 2008

Contraste da vida: quando somos jovens deitamo-nos com uma jovem donzela, não querendo que ela adormeça; agora deitamo-nos com os nossos pequenos netos e fazemos todos os possíveis para eles adormecerem!

Quinta do Anjo, 23 de Outubro de 2008

Para mim e abstraindo o ambiente familiar, restrito e são, só há, verdadeiramente, três coisas belas na vida, aquelas que ajudam a manter viva a seiva da nossa existência: as crianças, que são o futuro, as mulheres, que são o presente e a natureza, que é o sempre!

Quinta do Anjo, 24 de Outubro de 2008

Ao chegar a casa à hora do almoço assisti a uma parte do programa de Tv/Sic, de Fátima Lopes, qualquer coisa intitulada “tertúlia cor-de-rosa”.
Presenciei e fiquei abismado, como é possível haver coisas tão execráveis em pleno século XXI! Para quem não conheça esta aberração, isto versa o tema das ‘celebridades’ da nossa praça, dos seus amores e desamores, que mudam quase todos os dias, do fulano e da fulana que dormiram juntos, quando tinham dormido no dia ou semana anterior com parceiros diferentes, de outros e outras que atraiçoam o respectivo cônjuge, etc… Tudo isto comentado e julgado por um painel de ‘famosas’ figuras, certamente generosamente pagas, com ar compenetrado e gestos doutorais, parecendo estar a prestar um importante serviço em prol da comunidade, quando apenas estão a fazer parte, também, deste mundo putrefacto da nossa sociedade dos jet 7 e quejandos.
Depois digam que o mundo da prostituição não é mais puro do que este, aí ninguém é enganado, tudo sabe para onde vai e o papel de cada actor nesse acto, enquanto neste ‘mundo cor de rosa’ tais personagens vendem-se por meia dúzia de linhas numa qualquer revista ou por aparecerem uns segundos num qualquer canal de televisão.
Na vida da prostituição apenas se aluga o corpo, na vida dos ‘famosos’, a podridão é mais deprimente, vende-se o corpo e a alma.

Quinta do Anjo, 25 de Outubro de 2008

As rugas vão-me aparecendo na face, por vezes tento passá-las a ferro, só que o ferro está sempre frio!

Quinta do Anjo, 26 de Outubro de 2008

Levanto-me de manhã cansado, a noite foi mais longa, houve mudança da hora e como o sono acorda, sensivelmente, à mesma hora, andei às voltas na cama, sem dormir, para compensar o tempo a mais.
Nunca entendi para que serve este atrasar e adiantar da hora, como se fosse possível a vida andar para trás, ou correr para a frente, de forma diferente do habitual.
Andei todo o dia a sentir que algo não estava certo, o sol estava adiantado no tempo, a fome do almoço chegou antes da hora e a noite chegou antes do anoitecer…

Quinta do Anjo, 27 de Outubro de 2008

Cada dia andamos mais sedentos de amizade, paz e amor!
Sentimos mais esta sede de tranquilidade e afecto, do que verdadeiramente dos problemas monetários, dos bens materiais, do fausto do supérfluo, ou do prazer do efémero…
A vida, todavia, ri-se dos nossos desejos, faz desaparecer os velhos amigos e esconde os novos, em vez de paz ao espírito traz-nos guerra e, quantas vezes, até o amor nos leva…
Temos de conseguir mudar a vida, o presente só tem sentido se tivermos esperança no futuro, mas, entretanto, vamos saciando a sede bebendo água inquinada!

Quinta do Anjo, 28 de Outubro de 2008

O dia hoje acordou zangado, o vento, na sua violência, leva-me o cabelo e as ideias!


Quinta do Anjo, 29 de Outubro de 2008

Não raras vezes o meu pensamento, tal como máquina do tempo, transporta-me para o futuro. Esta minha nave de esperança leva-me para locais em que, em jovem, sonhava poder estar hoje.
Este mundo actual em que vivo suscita-me muita angústia, pelas desigualdades gritantes na sociedade: o tudo, para umas elites e o pouco, ou mesmo o nada, para a maioria. Cada vez assisto a um mundo mais desigual, mais desumanizado, mais egoísta… É triste viver uma era em que só singram os ídolos de ‘pés de barro’, os gurus, os habilidosos, os vigaristas, os vendedores de ilusões… Ao lado destes, as gentes anónimas vão esgravatando na lama, procurando as migalhas que sobram do festim dos poderosos. Para uns, banquetes, fausto, carros de luxo, iates, aviões, para os outros, trabalho e a angústia do mês ter dias a mais.
É esta vida presente que eu gostaria de transformar, apagá-la da memória como apago o passado, dar realidade aos sonhos de mais justiça, fraternidade e igualdade, teleguiar para ontem esta nave do tempo, para que todos tenhamos oportunidade, ainda hoje e doravante, de sermos felizes.

Quinta do Anjo, 30 de Outubro de 2008

Há uma expressão popular que diz: ‘quanto mais alto se sobe, maior é o trambolhão’!
Eu, quanto mais subo a serra, mais fico perto do céu!

Quinta do Anjo, 31 de Outubro de 2008

‘Mais um mês passado, menos um mês de vida, na adolescência um mês parecia um ano, agora parece um dia’!
Estas expressões são o sentimento caduco dos velhos de corpo e espírito, que não acreditam que o novo mês que amanhã se inicia é mais um sinal de confiança no futuro, a vida só acaba quando desistirmos de a acompanhar!
Com o passar dos anos vamo-nos tornando egoístas, gostaríamos que o mundo ficasse parado no tempo, não pensando que assim as crianças jamais deixariam de ser crianças, que a vida ficaria parada, estagnada, o progresso interrompido, que o futuro seria sempre o presente…
Quando começamos a sentir que nos faltam dias e sobram silêncios, quando olhamos apenas para nós, quando não apreciamos a beleza, quando não sabemos amar e sonhar, estamos a antecipar o fim.
Pelo meu lado quero ver terminar muitos meses, muitos anos, quero amar, quero viver!

Quinta do Anjo, Outubro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

DIARIO (1) - SETEMBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 20 de Setembro de 2008

Hoje tive os filhos, noras e netos aqui em casa. São estes encontros, sem data marcada, que dão gosto à vida. Os netos, com as suas tropelias e com as suas solicitações, fazem-nos regredir os cabelos grisalhos e voltar a ser crianças.
O Tiago comemorava os seus quatro aninhos e quando acendeu as quatro velas, numa sala escura, parecia que o sol estava no zénite a iluminar a candura da sua figura. Quando somos crianças basta uma chispa para iluminar o mundo, quando somos velhos podem acender-se todas as tochas terrestres que o cinzento pouco se altera.

Também durante a refeição e na altura em que o agrado da comida se confunde com o prazer da conversa, tive oportunidade de aprender com um dos meus filhos a sua sapiência a propósito das entrevistas que hoje se fazem aos jovens à procura de emprego. Este meu filho trabalha numa empresa de telecomunicações e estava a seleccionar pessoal, eis a entrevista:
Uma
- que experiência tens de trabalho?
- nenhuma!
- estás contratado, não tens vícios!

Outra
- gostas de trabalhar?
- sim, gosto muito!
- aqui não tens lugar, ou estás mentindo, ou estás a enganar-te a ti próprio!


Montijo, 21 de Setembro de 2008

As cidades são aglomerados de gigantescas colmeias, enxameadas de abelhas obreiras, sem abelhas mestras, sem organização, sem imaginação…
Casas velhas, prédios novos, são esqueletos estáticos, que nos roubam o sol, nos escondem as estrelas e nos acolhem para nos comer a carne e os ossos, para não lhes fazermos concorrência na escuridão das suas sombras.
Existem urbanizações que são autênticos desertos, campos de concentração, em que nos sentimos toupeiras escavando túneis, para fugirmos da vida ingrata dos dias sempre iguais.


Quinta do Anjo, 22 de Setembro de 2008

No calendário oficial hoje é o primeiro dia do Outono. Como norma, aceitamos tudo que nos impingem como dados consumados. Damos como correcto as datas do Carnaval, da Páscoa, das estacões do ano, enfim cabeças inteligentes dizem-nos que estas datas são as certas e quem somos nós, pobres ignorantes, para as questionarmos.
Na minha opinião, o Outono já começou há muito tempo, ou será que as folhas secas que ando pisando há tantos dias são apenas o Outono da vida!
Na realidade, aceito,convictamente, que o Natal é quando o Homem
quiser e não quando querem que eu acredite que seja.


Travessas, 23 de Setembro de 2008

Vou à minha aldeia e cada vez sinto mais saudades da minha terra! Esta não é a aldeia em que nasci e que amei em toda a minha existência! As poucas pessoas passam olhando o chão, os silêncios são trovões na quietude da paisagem. Como é possível tão pouca gente não sentir necessidade do calor do próximo?
Que nostalgia, Travessas, das épocas de outrora, em que todos eram apenas uma família, em que se falava, ria, brincava, comia e bebia, tudo em sã camaradagem e pura harmonia!
O passado deve ser um cofre do qual perdemos o código e a chave, não mais se deve abrir, todavia, vou-me contradizer e, por favor, tragam-me, depressa, a chave da minha terra do antigamente, talvez possamos reaprender a viver em paz e amor.


Quinta do Anjo, 24 de Setembro de 2008

Fui visitar um familiar em Lar de Acolhimento, um mês exactamente após ter sido acometido de um AVC e agora estar acamado e paralisado.
É sempre com um misto de angústia e de resignação que efectuo estas visitas. Estas situações fazem-me reflectir sobre a ténue fronteira entre a vida e a morte, e o nada que somos na passagem por este mundo.
Para quê tanta luta e sofrimento para acabar desta forma, será que o melhor não teria sido a não existência? E Deus, tão bom, justo e misericordioso, porque razão, também na morte, aceita as desigualdades da vida!


Quinta do Anjo, 25 de Setembro de 2008

Um automóvel estava a fazer uma manobra de marcha atrás, não vendo um cão que estava tranquilo a dormir na estrada, sem saber que estava prestes a ser atropelado. Como ia a passar, reparei na cena e enxotei o animal, que imediatamente e porque não entendeu o meu gesto, que lhe salvou a existência, me quis morder. Recuei, acalmei-o e reflecti nas razões da vida: um cão que é um ser irracional tenta agredir, por instinto, quem lhe faz bem, mas quantas pessoas humanas e, aparentemente, racionais não fazem o mesmo a outras pessoas que apenas as consideraram e ajudaram ao longo da vida.
Na realidade, a melhor forma de não ter desilusões é não ter ilusões!


Montijo, 26 de Setembro de 2008

Não sei a razão porque há dias que só me apetece desaparecer! O cérebro fica vazio, as pernas pesadas, os olhos perdidos no nada, a inquietação estampada no rosto… O dia está lindo, o sol brilha, o vento é suave brisa, as pessoas passam apressadas no quotidiano do dia-a-dia e eu, absorto, nem sequer procuro conhecer os motivos da minha desesperança.


Montijo, 27 de Setembro de 2008

Desde pequeno que tenho medo das trovoadas, mais propriamente desde os meus 8-9 anos, em que, a caminho da escola, junto ao S. João, no fundo da ladeira de Travessas, caiu um raio num pinheiro a poucos metros de mim e daí este terror a esta instabilidade atmosférica.
Hoje assisti a uma situação muito igual, em que relâmpagos e raios fizeram do céu desta região uma sinfonia de cores e som, qual fogo de artificio sem controlo humano.


Montijo, 28 de Setembro de 2008

Pela derradeira vez, no aspecto profissional, estive hoje numa urbanização do Montijo, que, de tão feia e desleixada, chamei de ‘terra inóspita’.
O tempo, tal como eu, esteve cinzento e ventoso, um inicio de Outono a condizer inteiramente com a estação do ano.
O adeus na vida é sempre triste, mesmo quando se parte de um local que abominamos e do qual só temos nefastas recordações. Todavia, na penumbra do entardecer, consegui vislumbrar uma flor selvagem na paisagem agreste e isso foi orvalho para os meus olhos no momento da partida.


Quinta do Anjo, 29 de Setembro de 2008

A morte venceu uma vez mais!
Chegou pela manhã, já o galo cantava e o sono se despedia!
É sempre muito dura a luta entre a vida e a morte, no entanto, a morte no fim sai sempre vencedora!
Nunca aceitamos o término da vida e todos sabemos ser inevitável!
Paz à alma e eterna saudade…
…de ti, que também foste minha mãe!


Portimão, 30 de Setembro de 2008

O último dia do mês de Setembro foi um dia de sol, de mar calmo e céu azul. Parecia que neste dia de despedidas o tempo também queria prestar homenagem a quem nasceu e tanto amou esta terra e esta região.
Sempre achei deprimentes os velórios e as cerimónias fúnebres, penso que o melhor preito que podemos prestar a um semelhante é em vida e não naqueles momentos, em que a maioria das pessoas presentes estão somente por obrigação, para hipocritamente ficarem bem perante os familiares mais próximos e perante a sociedade.


Quinta do Anjo, Setembro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

VIDA E LIBERDADE

Nasces-te ali, em modesta casa, no meio da serra, entre pinheiros e mato, chorando, nu, selvagem, livre…Bem, livre é expressão, nessa altura não havia liberdade, porque se a houvesse, com muitas probabilidades, serias um aborto!

A partir daqui acabou a tua liberdade! Jamais vais poder andar novamente nu, os costumes assim o exigem, a não ser quando tomas banho fechado em casa, ou quando vais à praia do Meco, também só, porque senão, para os conhecidos, és um exibicionista, um debochado… Também nunca mais vais poder gritar desalmadamente, a mãe diz que são cólicas, por não gostares de muitas caras que vês, assim como jamais vais poder arrotar ou dar uns sons de flatulência, porque tudo isso, pela vida fora, é sinónimo de transgressão das boas maneiras.

Pensavas que nascias uma pessoa, com personalidade própria, um homem, humano, criativo, imaginativo, inteligente e, no entanto,
vais passar a ser apenas aquilo que a sociedade, a vida, acha que deves ser, apenas mais um número, um ser no meio de muitos outros.

Na aurora da tua existência vais aprender a comer muito e a dormir ainda mais, porque os papás no outro dia tem de ir trabalhar, e os bebés querem-se fortes e sadios, nada melhor na vida de que comer e dormir para fortalecer o corpo e o espírito, este é o primeiro bom exemplo de aprendizagem na vida. Mais tarde vais também aprender a beber, porque é bom o cérebro andar o mais anestesiado possível.

De seguida vais iniciar a educação, ou seja, os bons costumes, beijar os papás, os vovós e a chata da vizinha, que hipocritamente diz que és um amor, ela sabe que tu lhe metes a língua de fora, assim como dás uns pontapés no ‘rafeiro’ e no ‘tareco’ dela, porque se não gostas dela também não gostas daqueles quatro patas.

Depois vem a escola e, claro, novas formas de educação, novas aprendizagens! O a,e,i,o,u, o contar até 10, …”o menino é muito inteligente, quiçá o mais esperto da escola!”…, pedir licença por tudo e nada, não dar beliscões à menina do lado, apesar dela ser petulante e ‘feiosa’, não dar umas palmadas, no recreio, àquele menino meio ‘abichanado’ que não reparte contigo o chocolate que leva, não colheres, para comer, aquela pêra apetitosa que ali está à beira do caminho, … “é um roubo, a pereira tem dono!”… e para tudo ser perfeito a senhora professora vai dizer à tua mãe que deves ir para a catequese, fazer a comunhão e não esquecer de ir aos domingos à missa, o espírito precisa de ser elevado e a criança respeitadora da boa ordem estabelecida.

O passo seguinte é o secundário, já és um jovem adolescente, a voz está grossa, usas óculos ‘ray-ban’, o passo torna-se gingão e começa a aparecer a barba, é a altura do teu pai te dar a primeira lição sexual, que é como quem diz, umas notas para ir às ‘meninas’, evidentemente ele acompanha-te para te recomendar à ‘patroa’, com a indicação de primeiro passar ali pela farmácia e comprar uma caixa de preservativos, que ‘mais vale prevenir do que remediar’…”e, hoje, todas as ‘meninas’, e não só, são umas depravadas”.

Agora tens dezoito anos e vais para os estudos superiores. Despesas extra, tens de tirar a carta e comprar uma ‘cafeteira’ velha, que isto de ir para a Universidade de transportes não dá estatuto. O curso para o qual julgas ter vocação é Direito ou Belas-Artes, mas o pai diz que isso são cursos sem saída e assim, tu que nem sabes apertar um parafuso, ou se a corrente eléctrica tem fase/terra/neutro, vais para engenheiro, que sempre é um curso tecnológico, com outras possibilidades.

Depois do ‘canudo’ tirado…”sempre um estudante aplicado, com excelentes notas!”…, é altura de começares a trabalhar, um estágio para aprenderes, sem ordenado, só senhas de refeição e depois se ficares aprovado, ingressas nos quadros, com um ordenado de 800€, que sempre é um pouco mais, vale-te o ‘canudo’, do que a geração dos 500€.
No trabalho, o horário de entrada é rigoroso, e mesmo quando adormeces de cansaço, tens de dizer que foi os transportes que se atrasaram ou foi as greves ou as ‘bichas’ do amanhecer. A hora de saída, essa nunca está marcada, tens de dar o melhor do teu esforço,..."o teu esforço é muito bonito"..., uma energia que se quer nacional, para aumentar a produtividade, como é óbvio, isto está mau para todos.

Até ao momento tens tido uns namoricos, umas garotas sem interesse, mas agora surge uma situação mais séria na tua vida. Os teus pais já há muito tempo que te falavam da ‘tal’ menina, filha de boas famílias e com ‘algum’ de seu, e tu, apesar de verificares não ser a ‘tal’ nenhuma beldade, aceitas o conselho dos pais e logo o casamento fica marcado. Não sabias que, ‘as boas famílias’, era só aparência, hipocrisia e que o ‘algum’, depois de andares uma vida a bajular os ‘velhos’, só viria a chegar, e nada daquilo que pensavas, quando já eras coxo e não tinhas dentes.
O casamento é conveniente que seja pela Igreja, isto dos casamentos apenas pelo Registo é…”meio caminho andado para o divórcio”..., libertinagem, assim deves convencer o teu padrinho a comprar-te um fraque 'à maneira' e a tua noiva deve ir de vestido virginalmente branco e não esquecer o ramo de flor de laranjeira!

Mas antes do casamento é necessário a compra da casa, que isto do ‘amor e uma cabana’ era coisa do antigamente. Assim, já em conjunto com a noiva, compras uma casa, com um financiamento por 50 anos, ficas a pagar 500€, a casa tem de ser baratinha, a vida não está fácil, não pensando sequer que a casa só será tua quando tiveres 75 anos, quase com os pés para a cova, antes pertenceu sempre ao Banco, mas está bem, é um orgulho, tiveste uma casa tua, por poucos dias, uma casa agora velha e decrépita, mas tua!

Agora casado, com casa nova e carro novo, adquirido também a prestações, julgas-te uma pessoa importante, a ponto de pensares que o homem que te tira o chapéu é por te julgar superior, quando é apenas um pedinte, pedindo esmola.

Assim e no engano de pensares ter personalidade, seres um homem
livre, não consegues ver que a tua vida é aquilo que a sociedade,
os poderes instituídos, querem que seja e não aquilo que imaginavas, tudo te vende aquilo que não queres comprar, tudo te impinge aquilo que querem que queiras…
Quando vais a um restaurante, pedes pescada de Sesimbra mas comes sardinha, porque já não há pescada e se pedes ‘Posta à Mirandesa’, comes bife da alcatra, pelas mesmas razões; se pedes água das Pedras dão-te Campilho e tu não a rejeitas. Também quando vais ao pub da esquina e pedes uma ‘Guiness’ tens de beber uma ‘Sagres’, porque esta é nacional e promove a selecção de todos nós.

Tudo isto é a liberdade que a vida, o mundo te impõem, e tu és obrigado a aceitar, a não ser que queiras ser ‘um marginal, um vendido, um parasita da sociedade’.

Depois aparecem os filhos, dois, naturalmente , porque mais que isso só para ricos e bem vestidos, antigamente era para os pobres, interessava os pobres serem sempre mais pobres, agora interessa mais seres classe média, a classe que paga os impostos para os ricos serem cada vez mais ricos e tu cada vez menos classe média.

Mais tarde vais para um lar, claro, porque já não dizes coisas com jeito e tropeças ao andar e os teus filhos, coitados, não têm tempo para te aturar, ali vais ter todos os cuidados extremosos , todo o desvelo prestado por pessoas carinhosas e atenciosas, e se para sair tiveres de assinar um papel, isso não é controlo, é apenas para se saber onde andas, para não te perderes!

Esta é a história da tua vida! É fácil verificar que nunca foste livre, foste apenas mais um prisioneiro deste enorme ‘Gulag’ que é o nosso mundo.

Para terminar, nunca penses no suicídio, os médicos não o fazem porque é eutanásia e tu se pensas atirar-te de uma ponte abaixo também não o faças, porque o suicídio é pecado e assim Deus não te aceita no Céu.

Como nota final, quando cá voltares outra vez, dizem que a gente um dia vai regressar a este mundo, tem a coragem de exigir essa liberdade, o seres uma pessoa, que agora te é negada.

(Este alguém desta crónica podes ser tu…)


Quinta do Anjo, Agosto de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

terça-feira, 15 de julho de 2008

TRAVESSAS (12) - Tia Eugénia

TRAVESSAS / TIA EUGENIA – HOMENAGEM E SAUDADE



Nasceu, em Celavisa, em 1910, ano da implantação da República em Portugal, mas depois do casamento viveu toda a sua vida em Travessas.
Seu nome: EUGENIA DIAS GONÇALVES.

Amou esta aldeia, porque amava a terra! Para ela o campo era a vida, era daí que vinha o sustento da família, era preciso cuidar bem dela, acarinhá-la, dar-lhe de comer e beber, porque sabia que ela lhe iria retribuir na colheita dos seus bens.

Era a primeira pessoa a levantar-se em Travessas! Quando os primeiros alvores do dia surgiam no horizonte era vê-la apressada, nos caminhos da serra, a colher mato ou lenha, era o inicio duma labuta diária que se prolongava, invariavelmente, até ao crepúsculo do anoitecer.

Era uma mulher de luta, uma mulher firme e determinada, para quem as dificuldades eram desafios, numa época em que as privações e o sofrimento eram o pão duro de todos os dias.

Recordo a firmeza de carácter, a simplicidade aliada a uma forte personalidade, uma maneira de ser frontal e honesta, a ausência da procura de ‘mexericos’ e conflitos…
Recordo os serões passados em alegres cavaqueiras, na descasca do milho ou dos feijões, em que ela, muitas vezes, se alheava da conversa e dormitava no intervalo entre duas espigas. Sinto saudade das festas e romarias em que a via exibir, com ar afidalgado, as suas melhores vestes, numa vaidade de província, que contrastava no trajar do vestido de chita e da capucha no frio Inverno.

Aprendi a admirar esta MULHER ainda menino e pela vida fora sempre a considerei um exemplo de carácter e dignidade, apanágio de coração bom em terra agreste.

Lutou e sofreu muito, mas sempre venceu! As privações foram muitas, acredito que, sem o manifestar, também teve os seus momentos de desânimo, mas tudo foi ultrapassando com a firmeza que sempre a caracterizou. Sofreu a partida dum filho no apogeu da vida, viu o marido, prematuramente, com alto grau de incapacidade física, venceu uma grave doença na década de oitenta, na adversidade encontrava forças para resistir. Tudo venceu, menos o fim, mas aí, eu penso, foi o cansaço da dura jornada e não a derrota dos vencidos.

Quando no dia de S. João, assisti à sua despedida deste mundo, na vila que a viu nascer, não pude deixar de cismar na singularidade da vida: a terra que ela tanto amou, estava agora a retribuir abraçando-a num ultimo adeus.

Até breve minha tia! A saudade, o amor e a minha homenagem a uma grande MULHER.

Quinta do Anjo/Palmela, 27 de Junho de 2008

Carlos Manuel F. Gonçalves
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(Jornal de Arganil nº. 4154 de 17 de Julho de 2008)