quarta-feira, 1 de outubro de 2008

DIARIO (1) - SETEMBRO DE 2008

Quinta do Anjo, 20 de Setembro de 2008

Hoje tive os filhos, noras e netos aqui em casa. São estes encontros, sem data marcada, que dão gosto à vida. Os netos, com as suas tropelias e com as suas solicitações, fazem-nos regredir os cabelos grisalhos e voltar a ser crianças.
O Tiago comemorava os seus quatro aninhos e quando acendeu as quatro velas, numa sala escura, parecia que o sol estava no zénite a iluminar a candura da sua figura. Quando somos crianças basta uma chispa para iluminar o mundo, quando somos velhos podem acender-se todas as tochas terrestres que o cinzento pouco se altera.

Também durante a refeição e na altura em que o agrado da comida se confunde com o prazer da conversa, tive oportunidade de aprender com um dos meus filhos a sua sapiência a propósito das entrevistas que hoje se fazem aos jovens à procura de emprego. Este meu filho trabalha numa empresa de telecomunicações e estava a seleccionar pessoal, eis a entrevista:
Uma
- que experiência tens de trabalho?
- nenhuma!
- estás contratado, não tens vícios!

Outra
- gostas de trabalhar?
- sim, gosto muito!
- aqui não tens lugar, ou estás mentindo, ou estás a enganar-te a ti próprio!


Montijo, 21 de Setembro de 2008

As cidades são aglomerados de gigantescas colmeias, enxameadas de abelhas obreiras, sem abelhas mestras, sem organização, sem imaginação…
Casas velhas, prédios novos, são esqueletos estáticos, que nos roubam o sol, nos escondem as estrelas e nos acolhem para nos comer a carne e os ossos, para não lhes fazermos concorrência na escuridão das suas sombras.
Existem urbanizações que são autênticos desertos, campos de concentração, em que nos sentimos toupeiras escavando túneis, para fugirmos da vida ingrata dos dias sempre iguais.


Quinta do Anjo, 22 de Setembro de 2008

No calendário oficial hoje é o primeiro dia do Outono. Como norma, aceitamos tudo que nos impingem como dados consumados. Damos como correcto as datas do Carnaval, da Páscoa, das estacões do ano, enfim cabeças inteligentes dizem-nos que estas datas são as certas e quem somos nós, pobres ignorantes, para as questionarmos.
Na minha opinião, o Outono já começou há muito tempo, ou será que as folhas secas que ando pisando há tantos dias são apenas o Outono da vida!
Na realidade, aceito,convictamente, que o Natal é quando o Homem
quiser e não quando querem que eu acredite que seja.


Travessas, 23 de Setembro de 2008

Vou à minha aldeia e cada vez sinto mais saudades da minha terra! Esta não é a aldeia em que nasci e que amei em toda a minha existência! As poucas pessoas passam olhando o chão, os silêncios são trovões na quietude da paisagem. Como é possível tão pouca gente não sentir necessidade do calor do próximo?
Que nostalgia, Travessas, das épocas de outrora, em que todos eram apenas uma família, em que se falava, ria, brincava, comia e bebia, tudo em sã camaradagem e pura harmonia!
O passado deve ser um cofre do qual perdemos o código e a chave, não mais se deve abrir, todavia, vou-me contradizer e, por favor, tragam-me, depressa, a chave da minha terra do antigamente, talvez possamos reaprender a viver em paz e amor.


Quinta do Anjo, 24 de Setembro de 2008

Fui visitar um familiar em Lar de Acolhimento, um mês exactamente após ter sido acometido de um AVC e agora estar acamado e paralisado.
É sempre com um misto de angústia e de resignação que efectuo estas visitas. Estas situações fazem-me reflectir sobre a ténue fronteira entre a vida e a morte, e o nada que somos na passagem por este mundo.
Para quê tanta luta e sofrimento para acabar desta forma, será que o melhor não teria sido a não existência? E Deus, tão bom, justo e misericordioso, porque razão, também na morte, aceita as desigualdades da vida!


Quinta do Anjo, 25 de Setembro de 2008

Um automóvel estava a fazer uma manobra de marcha atrás, não vendo um cão que estava tranquilo a dormir na estrada, sem saber que estava prestes a ser atropelado. Como ia a passar, reparei na cena e enxotei o animal, que imediatamente e porque não entendeu o meu gesto, que lhe salvou a existência, me quis morder. Recuei, acalmei-o e reflecti nas razões da vida: um cão que é um ser irracional tenta agredir, por instinto, quem lhe faz bem, mas quantas pessoas humanas e, aparentemente, racionais não fazem o mesmo a outras pessoas que apenas as consideraram e ajudaram ao longo da vida.
Na realidade, a melhor forma de não ter desilusões é não ter ilusões!


Montijo, 26 de Setembro de 2008

Não sei a razão porque há dias que só me apetece desaparecer! O cérebro fica vazio, as pernas pesadas, os olhos perdidos no nada, a inquietação estampada no rosto… O dia está lindo, o sol brilha, o vento é suave brisa, as pessoas passam apressadas no quotidiano do dia-a-dia e eu, absorto, nem sequer procuro conhecer os motivos da minha desesperança.


Montijo, 27 de Setembro de 2008

Desde pequeno que tenho medo das trovoadas, mais propriamente desde os meus 8-9 anos, em que, a caminho da escola, junto ao S. João, no fundo da ladeira de Travessas, caiu um raio num pinheiro a poucos metros de mim e daí este terror a esta instabilidade atmosférica.
Hoje assisti a uma situação muito igual, em que relâmpagos e raios fizeram do céu desta região uma sinfonia de cores e som, qual fogo de artificio sem controlo humano.


Montijo, 28 de Setembro de 2008

Pela derradeira vez, no aspecto profissional, estive hoje numa urbanização do Montijo, que, de tão feia e desleixada, chamei de ‘terra inóspita’.
O tempo, tal como eu, esteve cinzento e ventoso, um inicio de Outono a condizer inteiramente com a estação do ano.
O adeus na vida é sempre triste, mesmo quando se parte de um local que abominamos e do qual só temos nefastas recordações. Todavia, na penumbra do entardecer, consegui vislumbrar uma flor selvagem na paisagem agreste e isso foi orvalho para os meus olhos no momento da partida.


Quinta do Anjo, 29 de Setembro de 2008

A morte venceu uma vez mais!
Chegou pela manhã, já o galo cantava e o sono se despedia!
É sempre muito dura a luta entre a vida e a morte, no entanto, a morte no fim sai sempre vencedora!
Nunca aceitamos o término da vida e todos sabemos ser inevitável!
Paz à alma e eterna saudade…
…de ti, que também foste minha mãe!


Portimão, 30 de Setembro de 2008

O último dia do mês de Setembro foi um dia de sol, de mar calmo e céu azul. Parecia que neste dia de despedidas o tempo também queria prestar homenagem a quem nasceu e tanto amou esta terra e esta região.
Sempre achei deprimentes os velórios e as cerimónias fúnebres, penso que o melhor preito que podemos prestar a um semelhante é em vida e não naqueles momentos, em que a maioria das pessoas presentes estão somente por obrigação, para hipocritamente ficarem bem perante os familiares mais próximos e perante a sociedade.


Quinta do Anjo, Setembro de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves

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