quarta-feira, 21 de outubro de 2009

TRAVESSAS (17) - O PALHEIRO DA LOMBA



Palheiro!
As pessoas da terra chamavam-me, de forma depreciativa, palheiro e algumas desciam ainda mais de nível e de forma injuriosa davam-me o nome de curral.
Sim, sabia, não era uma casa de habitação igual a outras que via na aldeia, onde moravam pessoas e se ouvia o riso das crianças, mas também não era nenhuma barraca, nenhuma forma decrépita que causasse angustia ou dó.
Era uma casa bem talhada, feita de pedra de xisto e com lousas a servir de telha, agora até me sentia importante, estavam em moda as casas com pedra de xisto à vista, neste meu concelho existe mesmo uma terra – Piodão -, em que, na generalidade, as habitações são deste estilo.
Estava num local privilegiado, um lugar altaneiro à aldeia, já na encosta da subida para a serra, dali se avistava uma paisagem deslumbrante, natureza em todo o seu encanto, aldeias dispersas e ao longe a serra do Caramulo.

Sentia que era uma casa igual a tantas outras: um rés-do-chão que servia de guarida às ovelhas e cabras, separadas por um tabique e um primeiro - andar, onde se guardava de tudo um pouco, coisas do campo, como ferramentas, cortiços para as abelhas, temporariamente algumas colheitas e, essencialmente, palha para os animais se alimentarem nos tristes dias de Outono - Inverno, uma época em que, devido às inclemências do clima, não havia possibilidades dos animais saírem para pastar.

Devido ao local ermo em que me encontrava, sentia uma certa solidão, especialmente nas longas noites de Inverno, os meus donos via-os apenas duas ou três vezes por dia, nos momentos em que eles vinham alimentar os animais.
Por vezes, dava guarida a pessoas que eram apanhadas desprevenidas nas incidências da chuva inesperada ou nas tardes de trovoadas.
Recordo uma vez, seria Maio, em que uma violenta trovoada, com um ribombar assustador, relâmpagos, raios e um vendaval de chuva, me fez tremer de tal modo os alicerces, que cheguei a pensar no fim. Lembra-me, olhar os pinheiros da Fonte que, apesar de gigantes no tamanho, tremiam como varas verdes, cobardemente, no enfrentar da fúria da natureza.
As únicas companhias permanentes eram o gado no andar de baixo e em cima uns simpáticos ratos, que toda a noite faziam barulho na procura de algo para se alimentarem, umas osgas que comiam alguns insectos, uns pardais, que faziam o ninho nas frestas salientes do telhado e também uns animais voadores esquisitos, que somente apareciam à noite e a que chamavam morcegos.

Na Primavera – Verão, tudo era mais agradável, passavam por ali todas as pessoas da aldeia, na azáfama das sementeiras, das regas e da apanha das colheitas. Também era caminho, de passagem obrigatória, dos adolescentes e jovens, quando iam à serra apanhar mato para os animais, e lenha para as fogueiras.
Estes jovens, não raras vezes, utilizavam a palha, como se fosse lençóis em fofa cama, contando com a minha hospitalidade e o meu benevolente olhar, em contraste com a indignação dos meus donos, pois eles amassavam e espalhavam a palha toda, nas ardências dos seus movimentos. Os seus gemidos e ais não se assemelhavam nada aos uivos lamentosos do vento zangado, eram mais doces e profundos, assim como que uma suave brisa.
Igualmente, na loja, havia um carneiro e um chibo que, pelo que ouvia, faziam patifarias às suas companheiras, porque eu ouvia-as gritar de excitação ou de susto, não sei.

Com que encanto acordava nas manhãs, ouvindo toda a vida próxima, os animais pedindo comida, o chilrear dos passarinhos, o zumbir de todo o estilo de insectos, o aroma a terra orvalhada, a brisa fresca, o perfume das flores, o sol despontando sereno por cima da minha janela…

Adorava os dias lindos, os brilhantes dias de sol, até a minha silhueta ficava mais bonita, gostava de ouvir as gentes nas suas cantigas ao desafio, ficava feliz quando os passarinhos pousavam nos meus beirais, delirava com o cantar dum melro tenor, que cantava na cerejeira em frente e que todos os anos fazia o ninho numa silveira que havia ao lado dum vizinho olival.

Gostava, igualmente, das noites de luar, aqueles lindos luares de Agosto e Janeiro, em que a Lua surgia na serra do Vieiro, primeiro tímida e depois em todo o seu esplendor e logo a noite era dia, ocasião dos romantismos e das paixões, dos beijos e dos suspiros, que o meu ouvido conseguia captar na calada da noite.
Nesses momentos, o luar reflectia a sombra elegante da minha estrutura, e esta visão fazia-me sentir menos só, parecia que tinha ao lado uma alma gémea, e suspirava, sonhava como os mortais.

Nunca tive conhecimento da minha idade, permaneci sempre igual, nunca os meus donos se preocuparam em dar-me um aspecto mais belo, deste modo fui envelhecendo, comecei a sentir que o vento passava mais facilmente pelas frestas existentes, algumas traves estavam a ficar esburacadas devido ao bicho da madeira, o chão principiava a ter buracos, as tábuas a apodrecer, aparecia o musgo e a hera a tapar a beleza do meu corpo…

Já tinha conhecido duas ou três gerações de donos e os actuais também já não eram muito novos, assim foi sem surpresa que um dia apareceu um homem estranho para vir buscar o gado, pela conversa, tive conhecimento de que os animais tinham sido vendidos e a casa ia ficar somente para arrecadação, melhor dizendo, abandonada!
Esta situação causou-me uma certa perturbação, tinha-me habituado à companhia das cabras e ovelhas, mais do que propriamente à dos humanos, que via esporadicamente. Assim, a partir deste momento e quando constatei que, igualmente, só muito raramente por ali passavam pessoas - a aldeia tinha-se despovoado, uns tinham morrido e outros tinham partido para terras distantes -, apossou-se de mim a angustia da desistência e da solidão, as teias de aranha invadiam as paredes e até os ratos aos poucos foram desaparecendo.

Um dia, acordei, como toda a natureza envolvente, na sensação do ocaso próximo. Olhei, todo o horizonte estava cinzento, o fumo tapava-me a visão e logo de seguida, vindo de diversas frentes, surgiu o clarão vermelho do incêndio, toda a natureza encurralada na iminência do desastre, que imediatamente adivinhei. Primeiro assisti à destruição da serra, do mato e das árvores, os soutos de castanheiro foram a seguir e quando as línguas de fogo apareceram vindas do Curral Novo, da Fonte e do Alqueve, nesse momento já o fumo me tinha anestesiado e aguardava em calma sonolência a estocada final, qual touro amansado, em plena arena.

Em tempos, quando era mais nova, os meus donos tinham falado numa peça de teatro que eles afirmavam ter um final comovente, que dizia: ‘as árvores morrem de pé’! E nesses instantes finais verifiquei a verdade desta expressão, via todas as árvores, em redor, arderem quais fogueiras de S. João, mas os esqueletos fumegantes não caiam, ficavam de pé.
Nesta grandeza da glória na morte, também eu pensei, já delirando, que tinha de morrer de pé, e assim quando o fogo me entrou pelas entranhas, começando pelas portas e janelas, pelas traves de madeira e pelo soalho já esburacado, passando para a loja, eu sabia que tinha de resistir nas paredes, terminava os meus dias esventrada, um oco vazio, mas com as paredes hirtas, quais sentinelas vigilantes, morria, mas morria como as árvores… de pé!


Travessas - Arganil, 20 de Outubro de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

13 comentários:

Anónimo disse...

Seu texto me fez lembrar de tanta coisa. É tão engraçado isso, recordações trazerem outras recordações.
Que bom que vc apareceu.
Bjs amigo.

Lusa Vilar disse...

Eu adoro ler você. Fantástico, fico emocionada com seus contos, não o conheço, mas captei o seu espírito. Você escreve como se possuisse a minha alma. Parabéns!

Vivian disse...

...Carlos meu querido,
não pude conter as lágrimas
diante destas tuas palavras
sobre este canto, esta
hospedaria, este curral,
ou sei lá que nome possamos
dar, isso não importa.

Importa que você retratou
a alma de uma edificação,
o coração de um abrigo,
ao qual tantas vezes
não nos damos conta sobre
o valor que há alí.

Quantos sonhos, quantos momentos
bons ou ruins este espaço
silencioso e cúmplice presenciou?

Quantas emoções derremadas,
quantos colóquios, palavras
sussurradas, gemidos e ais
houveram alí?

Quantas pessoas vez ou outra
serviu-se deste abrigo de portas
sempre abertas sem distinção?

Enfim
quanto de energia aquelas paredes
receberam de cada visitante?

Ai ai...

Sorry, lindo.
Divaguei neste teu post,
e não poderia ser de outro
jeito...

Fui longe...muito longe
a um tempo em que eu acreditava
em um mundo cor-de-rosa.

Obrigada por me permitir
"viajar" neste post!

Beijos, muitos deles,
deixo à você!

Graça Pereira disse...

A história linda de um palheiro que podia ser a de uma pessoa qualquer.
Tal como essas pessoas, sofreu todas as vicissitudes, assistiu a enxurradas, desertificações, sofreu de mal de amores. Mesmo envoltas pelo fogo, não desistem e ali, hit
rtas enfrentam os desafios...como se tudo fosse começar de novo.
E tu...com os teus paraísos interiores, dançando com as palavras.
Bonito de se ler.
Um beijo e bom fds.
Graça

Graça disse...

Magnífica a tua narrativa, Carlos, gostei muito da personificação do "palheiro".


Beijo meu.

Joana Su disse...

Corajosa casa de xisto.
Ah serrana!!!
Muito bonito o seu texto.

Abraço
Joana

Lídia Borges disse...

Revisitar um espaço e um tempo feitos de cheiros, sons e tons de uma ruralidade deliciosa foi o que aqui hoje me aconteceu.
Costumo dizer, quando um texto me toca, de forma especial como este que tenho muitas saudades do que não vivi...

Um beijo

Carmo disse...

Carlos, fantástico texto. Que belas recordações.

São estas recordações que também dão sentido à nossa vida.

Gostei muito

Beijinhos

carmo

AFRICA EM POESIA disse...

Carlos
Obrigada por teres passado ...
Fiquei contente.
E assim sei que ganhei um amigo.
Um beijito
+++++++++

O tempo não é nosso.
Nunca nos prometeu nada.
Nunca nos deveu nada .´Mas...pôs-se à nossa disposição...temos que o aproveitar...

Deixo com carinho...

O TEMPO


Este é o Tempo...
Que foge...
Que escorrega...
Que voa...
Que teima...
Em não estar...
Mas que nós...
Teimosamente...
Agarramos com força...
E não deixamos fugir...
Quando ele escapa...
Voltamos a correr...
E a segurá-lo com força!...

LILI LARANJO

AFRICA EM POESIA disse...

Fantástico o teu texto.

Um beijo

Anónimo disse...

Nossa! Que é isso que leio aqui??
Lindo, veramente belo!
Teces palavras com maestria...


Beijos encantados...

intervalo disse...

Carlos,somente uma alma sensível pode descrever algo assim,triste acontecimento e belo no sentimento,suas palavras tocam-me profundamente.Desejo tenha uma tarde de domingo e semana de tranquilidade em seu coração.beijosss com carinho meu e cheirinho de chuva que vem chegando suave com a brisa que sopra nesta manhã de primavera.Lia...



Carlos,profundo demais isso...

Um dia, acordei, como toda a natureza envolvente, na sensação do ocaso próximo. Olhei, todo o horizonte estava cinzento, o fumo tapava-me a visão e logo de seguida, vindo de diversas frentes, surgiu o clarão vermelho do incêndio, toda a natureza encurralada na iminência do desastre, que imediatamente adivinhei. Primeiro assisti à destruição da serra, do mato e das árvores, os soutos de castanheiro foram a seguir e quando as línguas de fogo apareceram vindas do Curral Novo, da Fonte e do Alqueve, nesse momento já o fumo me tinha anestesiado e aguardava em calma sonolência a estocada final, qual touro amansado, em plena arena.

Em tempos, quando era mais nova, os meus donos tinham falado numa peça de teatro que eles afirmavam ter um final comovente, que dizia: ‘as árvores morrem de pé’! E nesses instantes finais verifiquei a verdade desta expressão, via todas as árvores, em redor, arderem quais fogueiras de S. João, mas os esqueletos fumegantes não caiam, ficavam de pé.
Nesta grandeza da glória na morte, também eu pensei, já delirando, que tinha de morrer de pé, e assim quando o fogo me entrou pelas entranhas, começando pelas portas e janelas, pelas traves de madeira e pelo soalho já esburacado, passando para a loja, eu sabia que tinha de resistir nas paredes, terminava os meus dias esventrada, um oco vazio, mas com as paredes hirtas, quais sentinelas vigilantes, morria, mas morria como as árvores… de pé!

Anónimo disse...

Parabéns, Lindos poemas!! Belos textos...
Postei um texto de minha autoria no (refletindo Ideias) e seria um grande prazer, ver um comentario seu lá.
Postei tambem no (Dr Videos) os 10 mais acessados do mundo!! O que mais gostei eu o consegui "dublado", porque, na verdade so tinha entendido algumas palavras rsrs...
Fica com Deus, ótima terça, abraço.