sábado, 13 de junho de 2009

E X I S T E N C I A (1) - PRIMAVERA / A Manhã da Vida

I – INICIO DA VIDA

- Mila, olha o menino que cai da cesta abaixo.
- Se cair apanha-se!
Este foi para o meu ser a origem da vida, tinha 4 meses, o diálogo que a minha mãe fez com a minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, que me tem contado vezes sem conta, quando andando a apanhar azeitonas, em cima duma oliveira, chamou a atenção da criança que estava a tomar conta de mim, para evitar que eu caísse da cesta, que, almofadada com vulgares trapos, servia de alcofa ou cama, no campo, nessa época.

A minha Primavera, a manhã da minha existência, teve o seu começo em Travessas, numa velha habitação geminada com a casa da minha avó, junto ao Chafariz, no momento em que o mocho e a coruja piavam no Pardieiro, o galo dormia e a Lua surgia, envergonhada, ali para os lados da Cova dos Mouros, na Serra do Vieiro, seriam 11 horas da noite, instante em que abandonei o lugar escuro do ventre da minha mãe, a improvisada parteira me cortou o cordão umbilical, me fez berrar - acordando os vizinhos - e depois dumas vigorosas palmadas – começamos a apanhar logo à nascença -, me soltou para a vida:
- É um menino, disse a mulher que assistia ao parto, depois de me olhar para o ‘escrito’!
- Louvado seja Deus, disse dorida a minha mãe!
- É um rapagão, deve ter quase 4 quilos, volveu a mulher.

II – TRAVESSAS – BERÇO

Travessas, o meu berço, aldeia encravada na encosta da Serra da Gatucha, jardim eternamente florido, montes e vales, escarpas, fragas - altares de xisto -, fontes e riachos de águas castas, natureza no estado puro, o céu como limite à imaginação…

Eram tempos difíceis, nasci em 1949, a 2ª. Guerra Mundial tinha acabado há poucos anos e Portugal vivia, há duas décadas, debaixo duma ditadura fascista, em que o ‘pão nosso de cada dia’ era não ter pão e não ter liberdade, ter, sim, pobreza, muita fome e opressão.
As pessoas viviam em aldeias, como a minha, Travessas, sem um mínimo de condições, a estrada não era transitável para carros, a electricidade era a candeeiros de petróleo ou candeias de azeite, não havia água canalizada, não havia telefone, as casas não tinham qualquer conforto, os animais de criação, porcos, galinhas e coelhos - quem os tinha -, viviam em estrumeiras nas lojas das casas, com toda a falta de higiene e salubridade dai decorrentes, com cheiros, ratos, moscas, melgas e outros parasitas a invadirem-nos a habitação.

O meu pai, depois de ter andado uns anos a extrair minério nas minas existentes no concelho de Góis e depois do final da guerra, quando o volfrâmio deixou de ter interesse para o fabrico dos canhões da guerra, viajou para Lisboa, fazendo companhia a quase todos os homens da terra, na esperança de conseguir ganhar algum dinheiro para o sustento da família, prática que se revelaria de total insucesso, pois com ordenados de miséria, longe da mulher e dos filhos, o dinheiro mal dava para o seu amparo, para os copos e para algumas virtuosas senhoras que, de forma magnânima, alugavam o corpo para alguns minutos de prazer, nada sobejando no final do mês para ajudar os que ficavam na aldeia.

A minha mãe, coitada, jovem com pouco mais de 20 anos, tinha de cuidar dos filhos, tratar dos animais e trabalhar nos campos, para conseguir uns parcos haveres, que eram a alimentação da família, alimentação essa à base de sopa e broa, nalguns dias um pouco de carne de porco, como conduto, em raras vezes umas sardinhas e uns chicharros, mais que isto era luxo, somente os mais remediados se permitiam comer carapaus, carne de vaca ou borrego. Apenas comi o primeiro bife de vaca quando da minha vinda para Lisboa, tinha 12 anos!

A minha progenitora foi sempre uma mulher resistente, lutadora, de forte personalidade e muita coragem! Com apenas 22 anos, dois filhos pequenos, só, sem o apoio do meu pai, ausente em Lisboa, enfrentou de forma resoluta as dificuldades, soube dar-nos a educação do berço, sempre nos incentivou na educação escolar, apesar de iletrada, nunca permitiu que houvesse fome em casa ou que andássemos maltrapilhos, ensinou-nos o que sabia fazer na dura vida do campo, instruiu-nos para o combate da vida…
A rija têmpera da minha mãe ficou bem evidente num dia em que eu, criança e enfermo dum tumor numa virilha, devia ter 5 anos, não dando meia dúzia de passos seguidos, me levou, às suas cavalitas, num trajecto a pé - não havia estrada, nem dinheiro para transportes a partir de Sequeiros -, de Travessas para o Hospital de Arganil, uma distância de mais de 10 kms., para ser observado e, posteriormente, lancetado pelo Dr. Fernando Vale.

III – TRAVESSAS – ‘CARTEIRO’

Era uma vida, na realidade, de muitas privações!
Lembro, em determinada ocasião, a minha mãe ter falado com o carteiro que fazia a visita diária à aldeia:
- Sr. António, queria enviar esta carta para o meu Acácio mas só tenho 9 tostões trocados!
- Oh! Elvira, deixa lá que eu meto o selo e depois quando tiveres trocado dás-me a diferença.
Ele entendeu perfeitamente que a minha mãe não tinha mais dinheiro, o selo custava 10 tostões, mas fez-se desentendido e pagou o tostão em falta.
Era uma excelente pessoa, este homem, sempre pronto a ajudar, trazendo de Celavisa, onde havia um estabelecimento comercial, coisas que as pessoas necessitavam, escrevendo pequenas cartas ou postais, - muita gente não sabia ler nem escrever -, fazendo de portador de recados de/e para outras pessoas da Freguesia e dando injecções, só a mim, em determinado momento, quando um médico louco me diagnosticou um infundado problema pulmonar, deu-me 40, de estreptomicina, uma por dia, já não tinha sítio no corpo para levar mais picadelas.
As gentes da terra pagavam-lhe com afecto, com copos de vinho e deixando a garrafa da aguardente em lugar bem visível, para este homem, que era amigo de toda a gente, se servir a seu gosto. Também lhe dávamos, um pouco daquilo que a terra tinha de melhor - água -, neste caso água - férrea, ali no caminho para o Lameiro Curral, era a sua fonte predilecta.
Quando se reformou e deixou de vir a Travessas, a fonte, acredito, com saudades, encheu-se de ervas daninhas e silvas e aos poucos acabou por esconder-se e morrer.

IV - MENINICE

Foi neste ambiente que nasci e dei os primeiros passos.
As primeiras imagens, que tenho do meu ser criança, era os contos que a minha mãe me contava para adormecer: histórias dos lobos que, outrora, andavam na serra e que, famintos, comiam gado e também pessoas; as bruxas que se reuniam nas encruzilhadas para fazerem as suas festas e bruxedos; e os lobisomens, homens que à meia-noite de sexta-feira, se transformavam em lobos.
É óbvio, com histórias destas, a noite era passada com a cabeça debaixo dos lençóis, a tremer, cheio de medo e a sonhar com fantasmas, no entanto estes contos fascinavam-me e era ver-me todas as noites a pedir:
- Mãe, conta-me aquela história dos lobos ou então a das bruxas, está bem!

Uma outra situação era esconder-me quando via alguém estranho, quase como um bicho amedrontado, tenho mesmo uma lembrança, muito nítida, dum dia ter tirado as sandálias, ter fugido e ocultado num galinheiro e andar toda a povoação à minha procura, apenas porque veio um barbeiro à aldeia cortar o cabelo aos homens, estando eu também na lista dos cortes.
- Anda cá, meu menino – dizia a minha mãe – este senhor é simpático, depois de te cortar o cabelo, vai fazer a festa, tem no saco uma guitarra e uma concertina…
- Não quero que ele me toque!
Foi o diabo para me convenceram da bondade do barbeiro e deixar cortar a penugem, estava habituado às tesouradas da minha progenitora e esta alteração da rotina era algo de inimaginável.

Neste meio tranquilo, onde nada se passava - as únicas novidades eram quando chegava alguém de Lisboa -, foi decorrendo a minha meninice, a minha irmã na Escola, a minha mãe a afadigar-se no duro trabalho do campo e eu a acompanhá-la e a brincar, fazendo casinhas com pedras e paus, utilizando os troncos das folhas de aboboreiras como instrumentos de sopro e fazendo moinhos, nos regatos, com seixos a fazer de mós e juncos a imitar velas. Na aldeia, os brinquedos eram feitos por nós: bicicletas de madeira; bolas de trapo; arcos, de varas de madeira ou de rodas de bicicleta, com uma vareta a servir de tracção; baloiços, com uma corda presa num castanheiro; ramos de salgueiro – estoques -, que, sem o sabugo, atiravam rolhas de cortiça, etc.

A minha irmã, cedo deixou de ser menina - penso que nem sequer lhe foi permitido aprender a brincar -, depois das aulas, tinha de ajudar a minha mãe em todos os trabalhos e quando terminou a instrução primária, com tenra idade, 11 anos, foi criança – mulher, fazia tudo, semear e cavar nos campos, ir buscar mato para os animais e lenha para a fogueira, dar dias fora, recebendo meia dúzia de tostões e mais tarde foi criada, de gente com mais posses, fazendo os mesmos trabalhos e ainda lavar roupa, passar a ferro e limpar casas. O meu preito à minha irmã, mulher por obrigação, na origem da adolescência.
Existe na minha reminiscência, um ano em que a minha mãe teve de vir uns tempos para Lisboa, em virtude do meu pai ter tido uma pneumonia e necessitar de auxílio. Nesse interregno, a minha irmã fez de dona de casa e de mãe, e em conjunto, mais ela, eu era pequeno, apanhámos toda a azeitona da nossa pertença. Esta situação passou-se em Dezembro e o azeite era impensável perder-se, era o ouro das colheitas.
No agreste Inverno, lembro, andarmos a correr, para aquecer os pés, num terreno da Horta da Branca, pisando gelo, antes de subirmos às oliveiras.


V – ESCOLA – INSTRUÇÃO PRIMÁRIA


Quando fiz 7 anos, foi o baptismo escolar!
A escola era em Celavisa, sede da Freguesia, a cerca de 4 Kms. de distância, com uma ladeira com um declive bastante acentuado, numa extensão de sensivelmente mil metros. Na ida, a descida, no início do dia, era uma maravilha, as pernas voavam, o pior era no regresso, a subida no fim da jornada, as pernas eram chumbo.
O trajecto para a escola era feito em mais ou menos uma hora, no Inverno debaixo de chuva, frio e geada e no Verão sob um sol inclemente. Numa ocasião, em Maio, durante uma trovoada, caiu um raio num pinheiro, onde tinha acabado de passar há escassos instantes, nunca vi a morte tão perto.
- Miro – era a minha mãe a falar – toma conta do Carlos, protege-o, não deixes que lhe façam mal!
- Esteja descansada, quem lhe fizer mal tem de se haver comigo – dizia o meu primo, veterano, de 8 anos de idade.
Na minha lembrança existem resquícios deste primeiro dia de aulas: o receio da professora e dos colegas mais velhos, daí a razão deste pedido ao meu primo, para me apresentar e auxiliar, igualmente, recordo o almoço composto de batatas -fritas, misturadas com um ovo e um bocado de broa, não me lembro de levar fruta, mas isso não era problema, havia muita no caminho!

A minha primeira professora foi uma Senhora, de Torrozelas, uma aldeia do concelho de Arganil, que não deve ter engraçado muito comigo, porque, não raras vezes, me flagelou com uma régua, que usava para reprimir os indisciplinados. A minha insubordinação eram coisas menores, tirar fruta e ovos para comer, chamar simpatias a alguns colegas, especialmente ao pessoal de Sequeiros, e isso sim, mais grave, dizer que a professora andava metida com o sapateiro da terra, pois se o homem todos os dias ia à escola, com sapatos ou sem eles, na minha imaginação precoce, algo se passava.
- Noémia, de certeza que o sapateiro tem um caso com a professora!
- Tu és parvo, não vês que ele vem trazer-lhe os sapatos!
- Tantos sapatos! Todos os dias?
A conversa ficou por aqui, só que a colega ‘chibou-se’, a professora chamou-me, nem sequer fez o contraditório e deu-me duas palmatoadas em cada mão.
Também o barbeiro de Celavisa, um indivíduo não muito simpático, chamou a mestra e disse-lhe:
- Há um menino de Travessas que apanhei a roubar fruta ali nas Hortas, junto à passagem da ribeira, repreenda-o!
A repreensão foi mais um par de açoites, como se tirar fruta dum pomar, para comer, fosse um enorme pecado. O meu primo, estava de guarda ao dono, mas como não deu pela sua chegada, eu é que fui identificado e ele conseguir escapulir-se, sorrateiramente.
Uma outra situação caricata da qual fui protagonista: os pais dum colega, de Sequeiros, arrendavam uma quinta no caminho para a escola, onde tinham criação, ovelhas, coelhos e galinhas. Não sei porque razão, talvez para pagar alguns favores escolares, o filho do rendeiro, no regresso a casa, levava-me ao galinheiro onde comíamos os ovos, fazendo um buraco de cada lado, chupando o conteúdo e deixando lá as cascas, como se o ovo estivesse intacto, o que enganava os progenitores do jovem, que pensavam ser algum bicho que andava fazendo os estragos. O problema, uma vez mais, foi uma moça de Sequeiros – tinha azar com as meninas desta terra -, ter sabido da ‘marosca’, ter contado à professora e, mais uma vez, a régua como carrasco, na educação exemplar.
Um País, fascizante, oprimido, exigia repressão mesmo quando se reprimia a fome.

A partir da 3ª. Classe e até ao final da Instrução Primária, tive a sorte de ter uma professora, de Sarnadinha, arredores de Lousã, da qual só tenho boas recordações: jovem, na casa dos vinte anos, bons conhecimentos pedagógicos, disciplinada, sem cair no exagero, atenciosa, simpática, amiga e …bonita!
Com uma professora destas era um gosto ir às aulas, a motivação era enorme, quase todo o pessoal passava, havia uma total sintonia entre a mestra e os alunos, havia tempo para tudo: estudar, brincar, passear, conviver e admirar a beleza da ‘sotora’.
Apesar de estar no início da adolescência, já era malandreco e também admirador das belezas da vida, assim quando ia ao quadro e enquanto a professora dissertava sobre a matéria, eu sentava-me num degrau abaixo da sua secretária, apenas para ter o prazer de admirar as suas pernas, e não só!
Quando cheguei à 3ª. Classe, já era o professor auxiliar dos meninos da 1ª., e na 4ª. Classe, fui promovido, ajudava nas aulas as crianças da 2ª. Com este estatuto, tornei-me importante, só brincavam no grupo quem eu autorizasse e tinham de pagar um tributo, que, normalmente, era fruta importada, rebuçados ou chupa-chupas.
A única divergência que tive com a professora, foi uma redacção sobre a Madeira - não sei se nessa altura o Alberto João Jardim já era Presidente do Governo Regional -, em que, na minha opinião, era nota para muito bom e como ela não concordou, fez de mim um contestador revoltado, à frente de toda a Escola, e claro fui punido, julgo ter sido a única vez que ela me infligiu um castigo.
Esta professora, tinha efectivamente uma alta consideração por mim e eu, palpitação por ela, foi a minha primeira ilusão, eu menino de 10-11 anos e ela 29.
Por vezes chamava-me e tinha grandes conversas comigo, no meio dessas conversas, perguntava-me:
- Carlos, que é que tu queres ser quando fores adulto?
- Presidente da República – dizia eu, ‘modestamente’!

Nessa época, 1956-60, a Freguesia de Celavisa era pobre e o comer escasso, assim era bem-vindo um suplemento alimentar, julgo, proveniente da Holanda, composto por queijo em barra e leite em pó, que a Igreja fazia chegar à Escola, para o lanche das crianças. Até aqui tudo bem, o problema era que a pessoa responsável, na Paróquia, pela distribuição destes alimentos aos alunos e às pessoas mais carenciadas, ficava com a maior parte, que depois dava aos familiares, amigos e a pessoas em troca de favores, ou seja, chegavam produtos que dariam para o lanche de todos os dias, mas nós apenas tínhamos o quinhão de lanchar uma vez por semana. São estas situações que fazem a descrença das Instituições e daquelas piedosas pessoas, que, na aldeia e não só, sempre vi muito próximas das Sacristias e dos corredores do Poder.

Depois do exame da 4ª. Classe, estava com 11 anos, os meus Pais, infelizmente, não tinham posses para eu poder prosseguir os estudos, no entanto e a conselho da professora, que me via com capacidades para mais altos voos, a minha mãe falou com um descendente de Travessas, a morar em Bordeiro, Fernando Gomes, que intercedeu junto do Pároco de Góis, para me ensinar a matéria para o exame de admissão à Escola Comercial. Esta aprendizagem, normalmente, seria um ano de estudos, mas, este sacerdote, conseguiu o milagre - era a sua profissão -, de me preparar, em dois meses, para o exame.
Em Setembro de 1960, o Padre Belarmino, leva-me de mota, para um Colégio de Freiras, em Coimbra, onde estive 2 dias, para me submeter à prova de ingresso ao grau seguinte dos estudos. Foi uma experiência inolvidável para mim, nunca tinha ido a uma cidade, a terra maior que conhecia era Arganil.
Deste modo, só, na capital do Mondego, foi com um desvelo inexcedível que as freiras e alguns colegas, já veteranos, ajudaram um ingénuo pacóvio, no descobrir de novas gentes e novos horizontes.
Passei, sem dificuldade de maior, apenas ajudado por um colega na prova de desenho, área em que sempre fui medíocre, delinear jarras não era comigo.


VI – ALDEIA (1) - RAIZES


Esta aventura terminou, as circunstâncias não tinham mudado, havia que assumir o molde da terra em que nasci: menino, estatura meã, mas força para carregar lenha e mato, guardar ovelhas e cabras e ajudar nos trabalhos do campo.
Pegava numa corda e numa mochila e acompanhado de outros jovens da terra, ia buscar molhos de mato ao Ventoso e de lenha ao Pardieiro, levava o gado a pastar, aos campos e serras, abria e fechava a saída das águas dos poços de regas, transportava estrume para as terras e ajudava, no que podia, na feitura das sementeiras.
Estas tarefas duras e cansativas tinham o lenitivo de alguma e sã camaradagem, brincava-se, cantava-se e havia mesmo alguns namoricos, algumas paixões, especialmente no pessoal mais velho, se aqueles matos ou aqueles palheiros, existentes nos campos, falassem, teriam muitas histórias de sexo e amor para contar.

VII – CÃO - ‘JANOTA’

Algures, nesta fase, os meus pais compraram, com bastante sacrifício monetário, uma casa no Cabeço, à entrada da aldeia, o que permitiu uma mudança para uma habitação mais condigna.
Uma casa isolada exigia um cão de guarda e o animal que nos ofereceram e que viveu connosco até à vinda da família para Lisboa, foi dos animais mais maravilhosos que me foi dado conhecer e do qual, ainda hoje, tenho imensas saudades. Chamava-se ‘Janota’, uma fêmea possante, amiga dos donos, mas uma fera para tudo que se aproximasse da casa.
Quando era pequena um vizinho, a cortar lenha, atingiu-a com um pau e um meu primo, a rebolar pedras, deu-lhe com uma no focinho, pois, pela vida fora, estes dois ‘agressores’ foram contemplados com constantes mordidelas, o bicho nunca mais se esqueceu deles, igualmente mordeu ao carteiro e ao burro do moleiro, pelo que tivemos de a prender.
Era, simultaneamente, um animal agressivo, mas também meigo: por vezes soltava-se e ia bater às portas das pessoas para lhe darem comer, não fazendo qualquer mal e não esquecia o meu pai que ia somente à aldeia, escassas vezes por ano.
Numa ocasião, depois de parir uma ninhada de cachorros e quando um dos filhos morreu, a cadela cavou um buraco, como que uma sepultura, onde enterrou o pequeno filhote e eu observei, pasmado, as lágrimas correrem-lhe pelo focinho, chorámos os dois, nunca consegui esqueci esta cena.
Era um animal tão amigo dos donos que quando, por qualquer motivo, nos tínhamos de ausentar, por exemplo para ir ao Carvalhal, terra da minha mãe, a Janota não comia nada nesses três dias e a minha tia, que ficava a tratar dela, dizia:
- Só começou a comer quando vos cheirou no alto da serra!
No culminar dessa dedicação, quando a minha mãe e irmã vieram para Lisboa e houve que encontrar um novo dono para ela, o cão pouco tempo teve de vida, deixou de comer e morreu de saudades.
É por estas e não só, que, em muitas ocasiões, gosto mais de animais irracionais, de que de gente que se diz racional.


VIII – CIDADE (1) – LUZES E SOMBRAS


Foi um período curto, esta minha passagem pela dura vida do campo. Com cerca de 12 anos, o meu Pai, que continuava sozinho, em Lisboa, numa das suas visitas a Travessas, normalmente fazia estas visitas duas vezes por ano, levou-me com ele, com o intuito de trabalhar – nesse tempo não era crime trabalhar com 12 anos -, e, se possível, caso a situação económica o permitisse, mais tarde estudar.
Fui viver com o meu Pai e mais três outras pessoas para uma águas-furtadas, na Rua da Atalaia, no Bairro Alto, em condições totalmente degradantes, com o céu e as estrelas como paisagem, através das clarabóias, - pelo menos era uma vista romântica -, a companhia permanente de ratos, baratas e de gatos a miar em cima do telhado. Uma noite, dois destes gatos, zangados ou com a excitação do cio e como a clarabóia se encontrava semi-aberta, vieram terminar a quezília em cima da minha cama.

O meu primeiro emprego foi numa fábrica de malhas e a minha tarefa andar a entregar caixas com roupas, nas lojas e a pessoas particulares.
É evidente, 12 anos, só, pela cidade, aproveitava o dinheiro que me davam para os transportes, ia a pé, ou pendurado no estribo dos eléctricos e autocarros e esse dinheiro, a que juntava as gorjetas que me ofereciam, servia para comprar os normais atractivos da adolescência.
Era ver-me caminhando pela cidade, livro numa mão e peças para entrega na outra, devorava leitura - revistas aos quadradinhos e livros de bolso, cowboys, guerra e ficção científica e outros mais eruditos, Júlio Dinis, Camilo e Eça -, comia chocolates, daqueles dos furos, bebia cerveja e sumos e fumava dois cigarros, por dia, que adquiria, avulsos, por 5 tostões, de marcas já extintas como Paris, Porto, ou Definitivos. Esta dos cigarros é original, o vício que apanhei foi continuar, pela vida fora, a fumar sempre dois cigarros por dia, ainda hoje o faço.
O meu Pai encontrava-me, por vezes, na rua nestas situações e não gostava nada do que via, e depois de mais umas asneiras, como desviar-me do trabalho, à tarde, para ir ao cinema e outros pecados, resolveu devolver-me à minha aldeia e à minha mãe.


IX – ALDEIA (2) - CAVADOR


Os meus 13 anos - só estive um ano em Lisboa -, foi um ano duro. Um vizinho, ainda familiar, de Travessas, arranjou-me trabalho para os Serviços Florestais, ele era lá Capataz, e esse período não vou esquecer jamais: plantar árvores, cortar mato e relva, abrir estradas e servir de aguadeiro:
- Rapaz, trás cá água – eram os outros trabalhadores a exigir – despacha-te, não nos deixes morrer à sede!
Largava a tarefa que estava a fazer, na verdade o mesmo trabalho que os outros, e ia buscar a água a uma fonte distante, com uma vasilha - um caneco de madeira -, com uns rebordos que me cortavam os ombros e as costas, tudo isto sob um sol abrasador, água essa que depois distribuía pelos colegas sedentos.
Estas tarefas, duma dureza inaudita para um jovem da minha idade, fez baixar o ânimo, conhecer as agruras da vida e aprender a lei das aldeias, aqui os verdadeiros civilizados eram os ignorantes e analfabetos, os instruídos, mais letrados, eram os maiores selvagens. Apesar de tudo foi uma experiência que me ensinou muito, com 14 anos era homem!

Nessa época, os passatempos eram escassos, somente, no Verão, as tradicionais festas das aldeias fugiam um pouco à rotina. Todas as aldeias organizavam a sua festa anual, com o principal atractivo a ser, para a juventude, a confraternização e os bailaricos, sempre com a esperança de encontrar uma alma gémea e apaixonada.
Ao fim de semana, ia a Celavisa ver televisão - ninguém a tinha em Travessas -, ver as notícias, a TV Rural, do Engº. Sousa Veloso, Ranchos Folclóricos ou Melodias de Sempre e para isto fazia 4 kms., para cada lado, com a noite, as estrelas, os pirilampos, as corujas e os mochos, como companheiros.
Uma outra situação de convívio era a recolha das sementeiras, em Setembro, com a apanha das uvas e a feitura do vinho, as desfolhadas do milho, com a descoberta da espiga vermelha – milho – rei -, que dava direito a um beijinho a todas as moças, e também a convivência no descasque dos feijões.
Serões em alegre cavaqueira, diálogos espirituosos, contos, anedotas e umas carícias às escondidas, na escuridão da noite.
Uma outra distracção, era ir achar e tirar ninhos de pássaros. Bem, não era, verdadeiramente, um divertimento, era uma incultura, um massacre dos pobres e inocentes passarinhos.
Ia pelos campos e serras, no início da Primavera, Março – Abril, e todas as aves que espantava, de certeza, tinham ninho próximo. Depois era só ver o estado do mesmo, se tinha ovos, ou já petizes, marcar o sítio e aguardar que os passarinhos crescessem, oportunidade para um suplemento alimentar - o comer escasseava -, o que não deixava, todavia, de ser um crime, mas eram, também, costumes ancestrais, passavam de geração em geração.
Ainda nesta área e continuando os atentados contra a natureza, colocava armadilhas, os tradicionais costelos, que com um chamariz de formigas de asas ou bichos dos caules do milho – partia os milheiros todos para os encontrar -, serviam para apanhar alguns tipos de pássaros, que tinham o mesmo destino daqueles que apanhava nos ninhos.

Também continuava a ler, sempre gostei muito de leitura, livros e jornais – ‘O Século’ e a ‘Comarca de Arganil’ -, que me emprestavam Benjamim Gomes e Silvério Neves.



X – CIDADE (2) – TRABALHADOR/ESTUDANTE


Com esta idade, 14 anos, o meu Pai, ou com remorsos pelo parco acompanhamento da minha primeira experiência em Lisboa, ou por entender que eu merecia algo mais do que ser um vulgar cavador na aldeia, foi novamente buscar-me e, desta vez, mais adulto e mais responsável, para sempre.
O emprego, desta feita, foi num armazém de papelaria e o trabalho separar os materiais, consoante as encomendas dos clientes. Foi mais um ano nesta tarefa, em que terminei a atender clientes, ao balcão, num estabelecimento, do mesmo dono, na baixa lisboeta.
Não estive mais que um ano nesta incumbência, fui aliciado para trabalhar numa multinacional americana e também, nesse mesmo ano, dei entrada na Escola Comercial Patrício Prazeres, na Costa do Castelo, para, em estudo nocturno, tentar tirar o Curso Comercial, uma área profissional com objectivos aliciantes.

Este período, dos 14 aos 20 anos, embora muito duro, trabalhar de dia, inicialmente, numa fábrica de rolos para máquinas registadoras e somadoras, e mais tarde, num stand de atendimento público, e estudar à noite, ou seja quase 17 horas fora de casa, com um pequeno intervalo, em alguns dias, para jantar - saída de manhã, cerca das 7 horas e chegada da escola por volta da meia-noite -, foi das mais entusiasmantes da minha vida: trabalho cansativo para um jovem da minha idade, mas sã camaradagem com os colegas do trabalho, e depois a escola, com o incentivo da aprendizagem e, também, outros convívios.

O meu 1º. Ano foi numa escola, feminina de dia e masculina à noite, assim todas as carteiras estavam marcadas com mensagens e corações apaixonados, não esquecendo os bilhetes que deixávamos nas frestas existentes nas referidas carteiras.
O 2º. Ano, já na Escola Comercial Veiga Beirão, no Largo do Carmo, a escola era masculina, de dia e de noite, mas existia uma escola feminina perto, a Escola D. Maria, na Calçada do Combro, à qual íamos esperar as meninas na hora da saída, normalmente às sextas-feiras.
- Carlos, hoje é dia de ir buscar as donzelas – dizia o António, um aluno, meu amigo, já veterano, cheio de ‘jogo’ -!
- Vamos, antes que se faça tarde e elas fujam!
Não fugiam, claro, o que elas queriam era alguém que as protegesse, na noite escura do Bairro Alto, a caminho da Baixa Pombalina.
Às vezes perdíamos algumas aulas nesta missão, eram os naturais devaneios e o fogo da juventude, tudo por uma boa causa, o encanto feminino.
Andei nesta vida, trabalho, estudo e, nos intervalos, alguma farra, durante seis anos, mais concretamente até ir para a tropa, o que sucedeu quando tinha 20 anos, tendo deixado três cadeiras por acabar no curso que frequentava. Este curso nocturno era de seis anos e apesar do trabalho cansativo e das loucuras próprias da idade, acabei por não perder muito nos estudos, somente atrasei essas tais três disciplinas (Francês, Inglês – não gostava de línguas - e Contabilidade, que era a disciplina final do curso).

Foi por esta época que, finalmente, a família se reuniu toda em Lisboa, com a vinda da aldeia da minha mãe e da minha irmã. Alugámos uma casa, na Travessa dos Inglesinhos, igualmente, no Bairro Alto, casa essa já com melhores condições, embora exígua, vivíamos os quatro em somente duas assoalhadas, com apenas uma casa de banho, sem banheiro, deste modo, o banho tinha de ser semanal e nos balneários públicos.


XI – CIDADE – PAIXÕES


Por esta altura, à volta dos 15 anos, perdi a virgindade, ali para os lados do Monsanto, tendo como tecto o Sol e o azul do Céu, a sombra dum pinheiro, um plástico como lençol da cama e uma meretriz que dizia:
- Despacha-te, filho, antes que venha a polícia!
Foi uma experiência, que mais tarde recordei, como das mais frustrantes da minha vida, uma sensação primitiva e animalesca, não era o sonho que se idealiza no dealbar da vida sexual, a origem do ser homem, mas, naqueles instantes, tudo era novidade, não pensei muito nisso!
Tive mais umas tantas experiências destas, na minha adolescência, mas essas já em quarto e com lençóis a fazerem de ondas de mar, no naufragar dos sentidos.

O Bairro Alto era, nessa época, um misto de tascas, para beber cervejas e copos de vinho a granel e onde, fora de horas, se cantava o fado vadio; casas de pasto, com comeres de confecção muito duvidosa; casas de fado, já para umas certas elites; bares de melindrosa reputação, locais onde se convivia, jogava matraquilhos e depois duns copos, se escolhia a menina para ir para a pensão da esquina. Alguns, com mais sorte, dinheiro ou charme, tinham a distinção de irem dormir no quarto onde a donzela tinha o seu lar!

A partir dos 16 anos começo a ter uns namoricos, normalmente duas ao mesmo tempo, para não cair na rotina, coisas sem interesse.
Ia, com alguns colegas, à referida Escola D. Maria, fazer escolta às meninas, íamos ao café beber uns copos, algumas vezes ao cinema e trocávamos beijos e outras carícias, nos vãos das escadas e outros locais escondidos.
Também as vizinhas não escapavam, o passatempo preferido era ir para a varanda trocar lânguidos olhares apaixonados e havia mesmo uma que me enviava mensagens, presas a molas de roupa, que arremessava para a minha varanda, com grande escândalo da minha mãe quando se apercebeu da situação:
- Carlos, aquela menina, da janela de frente, é uma desavergonhada!
- Nada disso, mãe, ela está apenas a pedir-me uma explicação, sobre uma matéria da escola – a minha mãe, infelizmente, não sabia ler! -.
Com o avançar da idade principiam a surgir novas conquistas, agora daquelas mais a sério, das que faziam doer, com muita paixão, muita ardência, mas também com ciúmes, discussões, amuos e não só.
Com 18 anos, vivi a maior paixão da minha adolescência, na figura duma jovem da zona de Azeitão, morava numa quinta dos arredores da vila e todas as semanas, ia passar o domingo com ela, era o único dia que tinha livre do trabalho e estudos. Era um êxtase e uma loucura esses dias do reencontro, os passeios de mãos dadas, no meio das flores e do mato agreste, os abraços e os beijos no alto do monte, apenas com a natureza como testemunha, as promessas de eterno amor, os olhos embaciados no adeus da despedida…
Como todas as paixões, em que o amor é apenas ilusão, também esta teve o seu epílogo após dois anos de fascínio, ciúmes e obsessão.

Na década de sessenta, havia um costume na juventude, a procura de amigos através da troca de correspondência. Uma revista, ‘A Plateia’, trazia anúncios de jovens com esse objectivo, - nessa altura era um intuito mais singelo, do que aqueles ‘simpáticos’ escritos que agora vemos nas páginas de alguns jornais -, e todo o pessoal aderia a essa moda.
Como sempre tive algum jeito para escrever, depressa aliciei diversas correspondentes, das mais variadas regiões do País e não só, também de Angola, Brasil, etc.
Estes intercâmbios, muitas vezes, transformavam-se em breves paixões e mesmo alguns namoros mais sérios. Lembro uma situação, em que enganando a minha mãe, ao dizer-lhe que ia estar com a namorada da época, apanhar o comboio de manhã, em Santa Apolónia para Coimbra e regressar à noite, depois de passar o dia com uma estudante universitária, uma moça da região da Covilhã, a estudar Economia na cidade do Mondego.
Nestas circunstâncias era um orgulho e uma vaidade, ter um enorme arquivo de cartas e fotos das donzelas e eu, claro, não fugia à regra. Era um trabalho insano escrever a todas, mas, consoante o interesse, enquanto para algumas a resposta era imediata, outras tinham de esperar mais tempo, com as desculpas habituais, do trabalho e estudos.
Quando me casei, os meus pais, avisadamente, deram sumiço a todos estes ‘troféus’, que tinha levado para a minha terra, Travessas.

XII – FERIAS

Na minha juventude e derivado do impedimento dos meus pais, passei férias, diversas vezes, sozinho, no meu burgo, Travessas, na terra do meu cunhado, Colmeal e na aldeia da minha mãe, Carvalhal do Sapo.
Sempre adorei estas terras, estas aldeias e assim que tinha possibilidade, era ver-me fugir do bulício da cidade, das correrias e das luzes e procurar a tranquilidade do campo, das serras e das estrelas.

Em alguns anos passei férias na minha aldeia, em casa dos meus tios Ramiro e Eugénia, sempre gostei muito destes familiares e eles retribuíam, com juros, este afecto:
- Carlos, o presunto está na arca e o vinho está no pipo, mesmo que não estejamos em casa, sabes o sítio!
Pequenos gestos que me cativavam, sentia-me bem na companhia do meu tio, sempre um bom conversador, amigo de transmitir o que o tempo e a experiência da vida lhe tinham ensinado, assim como sempre admirei a minha tia, a primeira pessoa a levantar-se em Travessas e a cuidar da terra como se ela fosse mais um filho.
Foi um prazer conviver com homens como o meu tio Ramiro, Silvério Neves, António Simões, Benjamim Gomes e Carlos Gomes. Aprendi muito com eles, sempre admirei, na diversidade, a sua maneira de ser, sentia-me bem a seu lado, o convite para ir à loja comer uma qualquer bucha e beber um copo de vinho, as conversas amenas, o jogo das cartas... Pessoas com pouca instrução estudantil – rara gente a tinha nessa época -, eram doutores na sua arte de cavadores e de tratar os campos, sabiam interpretar os sinais do tempo, gostavam de ensinar costumes ancestrais, foram verdadeiros amigos!
De Carlos Gomes, tenho presente uma expressão que este homem, já na fase da velhice, mas ainda com espírito, costumava dizer quando, na brincadeira, lhe chamava a atenção por ele andar sempre vestido com a mesma camisola vermelha:
- Oh! Ti Carlos, qual a razão de andar sempre com essa camisola, é alguma questão de fé?
- Não, Carlos – dizia-me ele -, é um engodo para as raparigas, elas vêem a camisola de longe e olha, quando vou à serra, é um desaforo, não me largam!
Uma outra, também deste homem, uma quadra que costumava cantar e que nunca esqueci:
- Oh! Rapazes rezem todos;
- Que a Francisca já morreu;
- Ela diz que a dava a todos;
- Só a mim nunca ma deu.
Não sei o que ela dava, mas o povo, na sua brejeirice, tirava as suas ilações.

Em Colmeal, ficava na casa de António Almeida Freire e Miquelina Freire, pais do meu cunhado - aos quais presto a minha homenagem de saudade -, os quais em conjunto com a sua filha, Fátima Freire, sempre me receberam de forma inexcedível.
Foi para mim uma honra e um prazer ter convivido com estes inesquecíveis amigos, a simpatia e amizade que me dedicaram, as horas que passámos em alegres cavaqueiras, o que aprendi no jogo da sueca e bisca – de – nove, com o patriarca da família, as músicas que ouvi no gira-discos, na varanda da casa, acompanhado pela Fátima e os manjares deliciosos confeccionados pela D. Miquelina.
Colmeal, era, nesse tempo, uma terra com muita juventude, especialmente no Verão, assim o ambiente era excelente: o convívio, as brincadeiras, os jogos, os bailaricos, os passeios, os banhos no rio, os serões… Enfim, férias inolvidáveis em que o Cupido, por vezes, lançava as suas setas.
Dessa época lembro os amigos, Álvaro, hoje médico, a Cidália e a Aurora Brás, penso que ainda somos parentes afastados e outros jovens que a minha memória já esqueceu.
Colmeal, paraíso do Ceira, será sempre, uma terra que recordo com nostalgia, uma aldeia hospitaleira, aprazível e maravilhosa, deste nosso lindo Portugal.

Uma aldeia, da qual também tenho excelentes recordações, é a terra da minha mãe, Carvalhal do Sapo.
Passei ali muitos e agradáveis momentos, em casa dos meus padrinhos e da minha avó, eram pessoas dum afecto inexcedível, especialmente a minha madrinha, que apesar das canseiras do campo, da casa e dos muitos filhos - meus primos -, ainda tinha tempo para me proporcionar todas as atenções e me dar todo o seu carinho.
Na minha memória, fica sempre a perdurar uma lembrança, quando era adolescente não gostava de carne ovina e caprina, não simpatizando assim com a chanfana, um dos pratos mais apreciados da região, confeccionado apenas em dias de festa. A minha madrinha, sabedora da situação, dava-me em troca uns enormes nacos de presunto, do mais saboroso que comi em toda a minha vida.
Carvalhal foi, em tempos idos, uma terra com muita gente e muita alegria, em qualquer dia e em qualquer lugar, especialmente à noitinha, junto à taberna do meu padrinho, se ouvia uma concertina e se organizava um bailarico. Todos os anos a festa do Santo Padroeiro, São João, era algo de inesquecível, chegava gente de todo o lado, de Lisboa vinham os filhos da terra, das aldeias vizinhas era um cortejo de forasteiros, atraídos por um evento dos mais apreciados e concorridos da Beira Serra.
Eram três dias de permanente animação, a parte mais respeitosa, a religiosa, composta de missa e procissão, e a parte profana, em permanente convívio, com jogos, brincadeiras e bailes de arrasar até raiar o novo dia. Era um deslumbre o Largo da Eira repleto de gente, em que tudo dançava, novos e velhos, eram necessárias duas rodas, ao som do tradicional fado mandado.



XIII – SERVIÇO MILITAR

Aos 19 anos fui à inspecção para o serviço militar, em Arganil.
Era uma época em que quase ninguém ficava livre, só com enormes ‘cunhas’ – sempre as houve -, ou grave deficiência física.

Era o tempo da guerra colonial, com a ida da juventude em força para Angola, Moçambique e Guiné, uma guerra sem sentido, já todos os países, como potências colonialistas, tinham dado a independência aos povos que subjugaram durante séculos e somente Portugal, a viver um regime ditatorial, sacrificou uma geração de jovens, separando famílias e interrompendo carreiras, com o horror do cortejo de mortos e estropiados, causando feridas na sociedade e na alma, ainda hoje não totalmente curadas.

Mas, retomando a inspecção, aquilo resumia-se a um exame vexatório, com um oficial médico e outros auxiliares tropas, a mandarem o pessoal fazer fila, todos nus, para Suas Excelências verificarem da nossa sanidade física. Os argumentos da falta de vista, de ouvido, ser coxo ou outras situações similares, eram puramente ignorados.
Depois do pessoal inspeccionado e enquanto nos vestíamos, era o gozo das brincadeiras, das apalpadelas amaricadas e dos ditos espirituosos, o almoço em conjunto e, para culminar o dia, umas bebedeiras monumentais, na comemoração do carimbo: ‘apurado para todo o serviço militar’!

Assentei praça no RAL1, em Sacavém, em Abril de 1970, tinha 20 anos.
A recruta era de 3 meses, tempos difíceis, disciplina férrea, comida péssima, recordo uma refeição em que nos serviram frango podre e quando houve um movimento de revolta, com a eminência dum levantamento de rancho, fomos ameaçados de prisão por um oficial, de pistola na mão.
Era um ambiente hostil, mesmo de medo, treinos e marchas a qualquer hora, de dia ou noite e em quaisquer condições atmosféricas. Lembro um treino num dia de vendaval, num dia em que houve inúmeras árvores partidas e algumas arrancadas em Lisboa e nós, todos encharcados, a chafurdar na lama. Tempos conturbados estes, a exigir a abdicação da própria personalidade.

Depois da recruta, a especialidade. Haviam uns testes psicotécnicos, que aliados à nossa profissão, ditavam o futuro militar. No meu caso e como era escriturário civil, não houve desvirtuamento no caminho, fui para escriturário, sendo transferido para Leiria, para o RAL4, onde estive mais 3 meses.
A especialidade, era o continuar dos treinos militares, agora já com a componente mais específica, ou seja a escrita, escrever à máquina – nesses tempos não havia computadores -, aprender a ler cartas militares e outros quesitos, já um pouco distantes na minha memória.

Nessa ocasião, em plena guerra colonial, o anseio de todos nós, depois do curso, era ser colocado num qualquer quartel ou repartição do Continente, para isso era necessário ficar, pelo menos, classificado até metade do curso, mais concretamente, dos 400 homens de cada incorporação, metade ficavam em Portugal e os restantes eram enviados para as antigas Províncias Ultramarinas, para o teatro de guerra. Não tive problemas de maior, dos 400 especialistas fiquei em 18º., tendo sido transferido para a minha primeira escolha, o antigo GCTA (Trem Auto), na Avenida de Berna, em Lisboa.
Aqui tudo foi mais fácil, fui para a secretaria, tendo como responsabilidade a feitura da Ordem de Serviço, o que fazia de manhã e de tarde ia trabalhar, ganhar uns trocos, para o meu emprego civil, na NCR, no Largo de Santa Bárbara, em Lisboa.
No inicio ainda tive de fazer alguns serviços, faxinas e guardas à noite, em guaritas, recordo um dia estar sonolento, a meio da noite, ouvir alguns barulhos e quando pergunto quem estava ali, eram colegas, que tinham ido para a borga, clandestinamente e agora estavam a saltar o muro para regressarem ao quartel. Neste tempo, 1970, estas situações eram complicadas, nunca se sabia quem estava do outro lado. Na Repartição contígua ao Quartel, o antigo DRM1, tinha havido, recentemente, um ataque à bomba, mas quem sofreu foi o indivíduo que foi colocar os explosivos, infelizmente, para ele, que morreu e felizmente para os que, eventualmente, seriam atingidos, não os soube manusear.
Depois de promovido a 1º. Cabo, responsável pela Ordem de Serviço, desarranchado e com o estatuto de lidar directamente com o Chefe da Secretaria e com o próprio Comandante, tudo foram maravilhas, com excepção dum dia em que o dito Comandante me chamou, para fazer sair na Ordem a punição dum colega e como eu estava ‘desenfiado’ foi um problema, só o Chefe da Secretaria me salvou de levar um castigo.
Passei à disponibilidade em Março de 2003, quase 3 anos, após a incorporação, com um louvor proposto pelo Comandante da Unidade e atestado pelo Chefe da Região Militar de Lisboa, como um exemplo a seguir (os louvores eram sempre iguais!).

Era um desperdício na vida dum jovem, estes longos anos ao serviço da Pátria, houve muita gente a fugir, a desertar, e houve outros que, infelizmente, como já salientei, pagaram com a vida, ficaram paraplégicos ou com traumas profundos, em consequência duma guerra injusta e sem qualquer sentido.

XIV – AMOR

Quando iniciei o serviço militar conheci uma jovem de Moscavide, terra próxima de Sacavém onde assentei praça e este encontro, no começo uma amizade igual a tantas outras, veio, mais tarde, a revelar-se o meu amor - penso que só se ama, verdadeiramente, uma vez na vida - e o lógico abandono da existência errante, de constantes e efémeras paixões, que tinha sido apanágio do meu ser.
Agora, com 23 anos, menos libertino, mais responsável no perspectivar do futuro, exercendo as funções de contabilista numa multinacional americana, com um ordenado razoável para a época, era chegado o momento de pensar no casamento, abandonar a sombra protectora dos pais e assumir a responsabilidade na construção do próprio lar.
A partir daqui, já com o compromisso assumido, a vida decorria tranquilamente, trabalho – namoro - casa, algumas escapadelas com os amigos, uns arrufos com a namorada, corolário lógico dos ajustes no contraste das personalidades, discutia-se os pormenores do matrimónio, o dia, o local, os convidados, a casa, a decoração e todos os pormenores inerentes ao acto.

XV – 25 DE ABRIL

Esta era uma época conturbada, tanto no aspecto político, como no militar, com constantes notícias de contestação civil e sublevações de tropas, que culminou, primeiro, a 16 de Março de 1974, no levantamento das Caldas da Rainha, este ainda abortado pelas forças fiéis ao Regime e mais tarde, em 25 de Abril desse mesmo ano, no movimento dos Capitães, este sim já com pleno êxito e que pôs fim a uma ditadura de quase 50 anos.
Nesse dia fui acordado pelo meu pai – ele trabalhava, durante a madrugada, no antigo jornal ‘O Século’ -, cerca das seis horas da manhã, com a novidade:
- Carlos levanta-te, está em curso um golpe militar e parece que desta vez a coisa é a sério!
Todo o povo andava à espera de algo, contudo, não se esperava tão cedo depois de ter sido abortada a sublevação das Caldas.

Foi uma data inolvidável o 25 de Abril! Passei o dia de rádio ao ouvido, pelas ruas do Bairro Alto, a presenciar, do miradouro de Santa Catarina, o movimento dos barcos de guerra no Tejo e mais tarde, no Largo do Carmo, assisti à queda do Regime, com a rendição das últimas forças militares fiéis e a deposição do Chefe do Governo, Marcelo Caetano.
A partir deste momento foi um extravasar de emoções: uma Nação reprimida, durante décadas, a manifestar o seu júbilo, a sua alegria, a primeira sensação de viver em liberdade…
Não vou esquecer, jamais, a esperança que vi nos olhos do povo e que teve o seu epílogo na grandiosa manifestação do 1º de Maio, cantava-se em uníssono:
- O povo unido jamais será vencido…
A partir daqui foram muitos os erros, cometeram-se muitos excessos em nome da liberdade, houve muitos oportunismos, o poder passou para os militares, os partidos principiaram a movimentar-se, as pessoas foram manipuladas, o povo dividiu-se em ‘progressistas’ e ‘fascistas’, a guerra civil esteve eminente. Felizmente houve o bom senso suficiente para evitar um drama maior e Portugal, aos poucos, soube encontrar um rumo democrático, de liberdade não tutelada.

XVI – CASAMENTO

Casei em 3 de Agosto de 1974, poucos dias após ter feito 25 anos, com a Maria Lisete, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.

Quinta do Anjo, 13 de Junho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

2 comentários:

_Sentido!... disse...

Tens razão amigo, visitaste o Bairro Alto antes de mim!....
Voltarei para terminar a leitura da tua história, fabulosamente bem descrita!
Já tentei mil vezes escrever a minha..., mas não consigo!...

Beijo de até logo.
M.

intervalo disse...

Carlos,aí ou aqui estórias de vida semelhamtes em vários aspectos.Encanta-me profundamente as palavras escrita,você tem facilidade com elas parabéns,adorei é sempre um aprendizado vir aqui.Um dia talvez consiga colocar no papel minha estória.Desejo que tenha um feliz final de semana.beijoss com carinho meu.Lia...