sexta-feira, 24 de abril de 2009

TRAVESSAS (14) - O Lavadouro da Bica

Lavadouro da Bica, lavadouro de Travessas.

A inscrição no frontal, exibe a data do nascimento: 1944.

É uma imagem típica da minha terra, ergue-se imperioso, numa encruzilhada de caminhos, onde terminam as casas e começa a montanha.

Quando chego à minha aldeia, ao largo do Cabeço e quando os meus olhos são, inevitavelmente, atraídos para a imponência da serra, logo surge, em primeiro lugar, o conjunto excêntrico do lavadouro da Bica.

Nasceu antes de mim, 5 anos, e tem sido um dos símbolos da minha geração, como um dos pontos de encontro obrigatório.
No início, um local de encontro de mulheres, a lavar roupa suja nos tanques e também na língua; de vizinhos e amigos, na passagem para os campos de cultivo, sempre um momento de dizer uma saudação e algumas palavras triviais – ‘bom dia… boa tarde… hoje está frio… vamos ter um dia quente…’ -; de namorados e paixões, no resguardo do calor do Sol, durante o dia, no romantismo da luz da Lua, na noite escura…
Hoje, em desuso, no respeitante à lavagem de roupa fora de portas, permanece um lugar de ócio ou lazer, onde fazemos uma pausa para beber água fresca – alguém ali colocou um copo, para o efeito -, ou para extasiar o olhar e o espírito na paisagem circundante.

Este espaço do lavadouro é constituído, pelo lavadouro, propriamente dito, pelo reservatório de recolha das águas que abastecem a aldeia e por um tanque de rega, cujas águas são provenientes do esvaziamento dos tanques da lavagem e o remanescente do depósito de recolha.

O chamado tanque das sobras foi utilizado, pelos nossos antepassados, no aproveitamento de toda a água disponível - toda a água era pouca -, para regar as culturas sequiosas, nas áridas terras. Era uma situação de extrema necessidade, mas também de plena ignorância, utilizar estes despojos de água na agricultura - esta água continha sabão e outros detergentes -, era, sem o povo imaginar, uma experiência pioneira - qual importante invento -, quando da recolha das batatas, feijões, cebolas e tomates, estes géneros já vinham, logicamente, lavados e desinfectados.

Os caminhos que saem do lavadouro, ou nele desaguam, reflectem muito a génese da minha terra: o caminho para os montes e para a serra, no acompanhamento e guarda das cabras e ovelhas na procura dos melhores pastos, a busca e carregamento de mato para os animais e de lenha para os fornos e lareiras; o caminho para os socalcos da costa e a descida aos vales, na árdua tarefa das sementeiras; a vereda para a outra banda, na fuga ao ‘congestionamento’ das ruas da terra; o caminho para casa, no regresso ao lar, depois das canseiras do dia de trabalho…

No largo do lavadouro existiu, outrora, um álamo, uma lenda da minha terra, que o povo foi obrigado a cortar em virtude das suas raízes destruírem o chão de cimento. Desta árvore ficou um verso:

- Adeus lugar de Travessas;
- Adeus ao álamo da Bica;
- Mesmo que eu me vá embora;
- O álamo sempre lá fica!

Não ficou, foi assassinado, e o esquecimento levou, igualmente, o anónimo versejador que fez esta quadra!

Saudades, do passado, das lavadeiras, dos amores e do álamo? Não! Saudades do futuro, de ver crescer novos álamos, agora para perpetuar as raízes que somos, de cheirar as rosas que embelezam o largo, de novos beijos ao luar, de esperança na vida…

A voragem da existência vai, gradualmente, levar esta geração - em que me incluo -, na procura insana da renovação da vida. Para a posteridade, para os jovens actuais e para as gerações vindouras, deixamos um legado com história, um dos nossos ‘monumentos’: o lavadouro da Bica!

Quinta do Anjo, 20 de Abril de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

(Jornal de Arganil nº. 4197 de 14 de Maio de 2009)

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