quinta-feira, 30 de julho de 2009

ESTRADA DA VIDA - (CAMINHADA) - 60 ANOS DE ESTRADA

(Escrevi há dias este texto, numa antevisão ao meu aniversário próximo. Na concretização, hoje, dos meus 60 anos, passo-o para primeiro plano, representa, um pouco, a retrospectiva da minha vida).


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Nasci, cresci, andei, envelheci…
Nasci, bebé a andar de rastos, tropeções do instinto, no começo de vida;
Cresci, criança a pisar mato e silvas, adolescente a subir ao monte, num caminho por desbravar, jovem no circo das luzes, na aprendizagem da passagem para a outra margem;
Andei, homem a escalar a serra e a lutar contra os escolhos da vida; Envelheci, a esbarrar nas pedras, na descida da montanha, rumo ao vale.

Vivi de palpitações, namoros, paixões, amores…

Vivi de palpitações, ainda não conhecia as paixões, em criança, antes da puberdade;
Vivi os naturais namoros da adolescência e juventude, devaneios, sem sinais, nem recordações;
Vivi paixões ardentes, daquelas que doem, que deixam marcas, emoções no limite, obsessões na vida;
Amei uma vez, eterno amor.

Lutei, errei, perdi, ganhei…

Lutei, sempre segui em frente, nem sempre pelos melhores caminhos, na procura das melhores soluções, uma luta de carácter, não de atropelos, numa perseverança obstinada e, em momentos, desesperada;
Errei, muitas vezes me enganei, errei por confiar nas pessoas, por acreditar no mundo, por teimosia e, também, por orgulho;
Perdi nas lutas inglórias em que me envolvi, fui náufrago nas águas tormentosas do quotidiano, perdi os que imaginava amigos, vou perdendo os que mais queria, pequei no desvario das paixões, vou sendo vencido no duelo da vida;
Ganhei, por ter vivido, na paixão pela natureza, no afecto e amizade dalguns familiares e amigos, no amor da mulher, dos filhos e dos netos.

Hoje, presente; amanhã, futuro…

No presente de hoje, antevejo o futuro de amanhã!
Vivo no entardecer, na curva descendente, estou ficando mais pessimista, mais desesperançado... É verdade, nunca fui um indivíduo extremamente afoito, mas sempre colmatei a timidez, com a coragem de assumir riscos e a confiança da frontalidade e da sinceridade.
Hoje sou um homem com medos, medo das doenças, medo do desconhecido, medo do amanhã… Fiquei supersticioso, procuro trevos de 4 folhas e malmequeres que digam ‘bem-me-quer, muito’, guardo amuletos, aprecio capicuas, não deixo que me leiam a sina, abomino gatos pretos, não passo por baixo de escadas, não gosto das sextas-feiras, dias 13 e consulto, às escondidas, horóscopos.
Eu que nunca me preocupei, nunca pensei na velhice, começo agora a ter medo dos sessenta anos, a viver a angústia do crepúsculo, a antever o ocaso…
Não há dúvida, quando sinto que o corpo, que nunca me traiu, começa a fraquejar, quando percebo que me faltam horas e sobram silêncios, quando tenho consciência de que a minha vida joga com a morte um jogo viciado - uma partida de roleta russa -, então, o corpo treme, a tempestade assola o meu espírito, a inquietação invade-me a alma…
Sempre acreditei na vida, na juventude e no futuro, não gostava, de forma alguma, de deixar de ser um homem de esperança! Assim, tenho de eliminar o niilismo do meu ser, esquecer as rugas do corpo e da alma, voltar a viver os idílios, a nascer todos os dias, para ser mais uma criança, na difícil missão de construir um mundo melhor, a sentir o prazer da existência, a viver os encantos e os afectos…

Quimeras e sonhos…

Pela vida, pela esperança, pelos sonhos, pela natureza, pelas paixões, pelo amor… quero prosseguir a caminhada, rumo ao infinito, quero viver!

Quinta do Anjo, 23 de Maio de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sábado, 25 de julho de 2009

IMAGENS DA VIDA - O MELRO

O melro cantava, todos os dias, sensivelmente à mesma hora, em cima da mesma oliveira…
Do alto do seu ramo, elegante, na sua vestimenta preta e de bico amarelo, os seus cantos eram desafios para todos os outros pássaros que, tal como ele, alegravam as manhãs com as suas cantorias. Não sei se não seria também vaidade, ser o maior tenor da zona, o marcar terreno, em relação à sua apaixonada que, por vezes, lhe fazia companhia no ramo ao lado.

No quotidiano sossegava o meu espírito com árias de puro deleite, era o companheiro mais presente nas horas da minha solidão.

Hoje, à hora habitual, estranhei o silêncio, não o ouvi cantar. Fui junto da árvore, seu poiso, não vi o meu inspirador e quando os meus olhos são atraídos para a cerca de arame, que veda o condomínio fechado duma urbanização próxima, vejo o corpo do melro, no chão, morto. Provavelmente, num dos seus voos, foi imprevidente, não reparou na cerca e o choque contra ela, determinou o fim da sua existência. O progresso foi a causa da destruição dum ser, que fazia da vida o encanto de outros seres.

Quando vi aquele corpo preto caído na terra, a emoção foi mais forte, pressenti a orvalhada da manhã na névoa dos meus olhos, e na angústia do momento peguei-lhe, com carinho, fiz uma cova e enterrei-o. Este meu amigo não merecia terminar na boca de um qualquer predador, tinha direito a um descanso digno.
No instante em que terminei a tarefa, senti que o preto das suas penas era agora o negrume da minha alma.


Quinta do Anjo, 4 de Junho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

sexta-feira, 10 de julho de 2009

TRAVESSAS (15) - O Castanheiro do Alqueve

Sim, sabia que era velho!
Não sabia, todavia, quantos anos tinha, embora ouvisse dizer que a sua espécie, por tradição, vivia 300 anos a crescer, 300 a viver e 300 a morrer e ele já estava na curva descendente há muitos anos.

Muitas gerações de pessoas tinham passado por ele, via as crianças, no início de vida, depois jovens e adultos e mais tarde velhos como ele e isto repetia-se, ciclo após ciclo, durante muitos séculos.

A sua morada era em Travessas, na encosta do Alqueve, um ermo, na fronteira que separa o souto dos castanheiros, da zona de mato e pinheiros, no caminho para as Aveleiras.

Do alto dos seus ramos gostava de admirar o Sol e o azul do céu, a Lua e as estrelas, ver o trânsito a passar na estrada, junto à Nossa Senhora da Boa -Viagem, em Sarnoa - Celavisa, avistar, durante o dia, os milhafres, os peneireiros e as águias, voando na imensidão do espaço da Serra do Porto Cimeiro, assistir à passagem dos gaios e corvos, para a Fonte e Lameiro Curral, apreciar, durante a noite, o deambular dos morcegos, assim como vislumbrar, na escuridão, os mochos, corujas e bufos, passarem a caminho da Vinha – Velha ou da Alagoa.

Nas suas pernadas e na folhagem mais recôndita, dava guarida e casa a todas as espécies de pássaros que ali quisessem resguardar-se ou fazer o seu ninho. Na Primavera – Verão era uma correria ver qual conseguia o melhor lugar, longe das vistas curiosas dos jovens adolescentes e das aves de rapina, que logo aproveitavam para lhes surripiar as crias e destruir os seus lares, assim como buscavam protecção das inclemências do tempo, das trovoadas e do sol abrasador.

O seu tronco, que três homens não conseguiam abraçar, estava agora vazio, era um tronco oco. Os muitos anos tinham-lhe levado o cerne, a sua robustez de outrora estava agora limitada a um simples anel, onde uma pequena camada do seu âmago, resguardada pela casca, deixava passar a seiva que lhe ia alimentando o resto do corpo.
Apesar de decrépito, quantas vezes este tronco vazio serviu para proteger as gentes da aldeia, do agreste frio de Inverno e da chuva que surgia inopinadamente, em ocasiões serviu mesmo de refúgio amoroso a alguns casais que buscavam no seu interior um lugar resguardado de indiscretos olhares.
Igualmente foi lugar de descanso ou mesmo dormida de animais nocturnos, como ginetes, papalvos, doninhas e gatos - bravos. Muitas vezes sentiu a presença de coelhos, que procuravam alimento nas castanhas caídas e lobrigou outras espécies, farejando a seus pés, como raposas, nas suas tarefas de caça, e outros animais de mais elevado porte, como texugos e javalis, cujo trilho de passagem, da Serra para o Pai Joanas, era mesmo ali ao lado.

Também amou, amou muito, a brisa enleava os seus ramos e as suas folhas numa vizinha castanheira, os gemidos do vento, eram os ais do seu coração apaixonado, foi o amor da sua vida… No início, uma louca paixão gerou vendavais no tempo, com o passar dos anos, o sentimento exacerbado deu lugar ao amor e a uma cúmplice e eterna amizade. Quando ela morreu, vítima dum fungo chamado ‘doença da tinta’, a existência deixou de ter sentido, passou a viver oco, como o seu tronco, na melancolia da solidão.

Teve filhos, muitos filhos, todos lhe levaram, perdidos nos temporais ou tirados pelos homens, que os utilizavam em utensílios domésticos, como cestos, cestas, pipos, varas e esteios para os corrimões das vinhas, ripas e traves para o telhado das habitações…

Durante séculos deu, a todos, o melhor de si: casa, filhos, guarida, a beleza das flores em Maio e castanhas, muitas castanhas, ano após ano, no mês de Novembro, sempre os seus ramos se curvavam carregados daquele fruto, que em épocas ancestrais, era dos principais meios de subsistência duma povoação abandonada e carenciada.

As eras foram passando e a tudo, o velho castanheiro, foi resistindo, resistiu às pragas, aos vendavais e aos ciclones - houve um, todavia, que o deixou deveras maltratado -, as pessoas, passavam no caminho e olhavam, com respeito, a sua longevidade e agradeciam tudo aquilo, que ele nunca regateou, na eterna oferta que fazia.

Assistiu às diversas transformações da vida: viu o trânsito na estrada Góis -Arganil, passar de carruagens puxadas a cavalos para os rápidos e brilhantes carros de agora; assistiu à passagem, lá longe, junto ao céu, duns pássaros enormes, que mais tarde soube chamarem-se aviões; admirou a mudança nas indumentárias das pessoas, gostava mais das roupas modernas, do que dos antigos trajes de linho, riscado, sarja, chita, estamenha, burel, surrobeco, cotim, sapatos em carneira e tamancos; não entendeu porque, antigamente, ouvia alegres cantigas ao desafio, em qualquer lugar, e mais tarde apenas o silêncio; ficava receoso quando na distância, por vezes, via clarões que, nos comentários que ouvia, diziam ser incêndios, felizmente naquela terra não havia desgraças dessas.

Quando já cansado, doente, velho e senil deixou de sentir e admirar os prazeres da existência, quando as pessoas, que passavam, lhe batiam, de forma depreciativa, com a sachola ou com o machado, lhe atiravam pedras para a toca e diziam: - ‘pobre castanheiro, está velho!’- nessa altura começou a ter uma sensação de angústia, um desassossego e uma dor de alma, que pronunciava uma desistência de viver, um aceno ao termo da vida.

Foi assim que no dia em que acordou pela manhã e olhou o Porto Cimeiro, a Serra da Barroca Larga, o S. João e a Vinha – Velha e viu um clarão vermelho, tudo em chamas, sentiu o calor anormal e a cinza cair-lhe nos ramos, logo um presságio lhe fez sentir que o ocaso estava próximo.

Depois de tanto ter vivido, tantas gerações conhecido e a tantas coisas ter assistido, foi quase num deleite de puro alívio que abriu os braços, no preciso instante em que sentiu as suas folhas e ramos principiarem a arder, e quando o lume lhe entrou, pela toca, nas entranhas do seu corpo, já era um ser entregue na volúpia do fim.


Quinta do Anjo, 10 de Julho de 2009

Carlos Manuel Fernandes Gonçalves

(Jornal de Arganil nº. 4206 de 16 de Julho de 2009)

quinta-feira, 9 de julho de 2009