quinta-feira, 14 de agosto de 2008

VIDA E LIBERDADE

Nasces-te ali, em modesta casa, no meio da serra, entre pinheiros e mato, chorando, nu, selvagem, livre…Bem, livre é expressão, nessa altura não havia liberdade, porque se a houvesse, com muitas probabilidades, serias um aborto!

A partir daqui acabou a tua liberdade! Jamais vais poder andar novamente nu, os costumes assim o exigem, a não ser quando tomas banho fechado em casa, ou quando vais à praia do Meco, também só, porque senão, para os conhecidos, és um exibicionista, um debochado… Também nunca mais vais poder gritar desalmadamente, a mãe diz que são cólicas, por não gostares de muitas caras que vês, assim como jamais vais poder arrotar ou dar uns sons de flatulência, porque tudo isso, pela vida fora, é sinónimo de transgressão das boas maneiras.

Pensavas que nascias uma pessoa, com personalidade própria, um homem, humano, criativo, imaginativo, inteligente e, no entanto,
vais passar a ser apenas aquilo que a sociedade, a vida, acha que deves ser, apenas mais um número, um ser no meio de muitos outros.

Na aurora da tua existência vais aprender a comer muito e a dormir ainda mais, porque os papás no outro dia tem de ir trabalhar, e os bebés querem-se fortes e sadios, nada melhor na vida de que comer e dormir para fortalecer o corpo e o espírito, este é o primeiro bom exemplo de aprendizagem na vida. Mais tarde vais também aprender a beber, porque é bom o cérebro andar o mais anestesiado possível.

De seguida vais iniciar a educação, ou seja, os bons costumes, beijar os papás, os vovós e a chata da vizinha, que hipocritamente diz que és um amor, ela sabe que tu lhe metes a língua de fora, assim como dás uns pontapés no ‘rafeiro’ e no ‘tareco’ dela, porque se não gostas dela também não gostas daqueles quatro patas.

Depois vem a escola e, claro, novas formas de educação, novas aprendizagens! O a,e,i,o,u, o contar até 10, …”o menino é muito inteligente, quiçá o mais esperto da escola!”…, pedir licença por tudo e nada, não dar beliscões à menina do lado, apesar dela ser petulante e ‘feiosa’, não dar umas palmadas, no recreio, àquele menino meio ‘abichanado’ que não reparte contigo o chocolate que leva, não colheres, para comer, aquela pêra apetitosa que ali está à beira do caminho, … “é um roubo, a pereira tem dono!”… e para tudo ser perfeito a senhora professora vai dizer à tua mãe que deves ir para a catequese, fazer a comunhão e não esquecer de ir aos domingos à missa, o espírito precisa de ser elevado e a criança respeitadora da boa ordem estabelecida.

O passo seguinte é o secundário, já és um jovem adolescente, a voz está grossa, usas óculos ‘ray-ban’, o passo torna-se gingão e começa a aparecer a barba, é a altura do teu pai te dar a primeira lição sexual, que é como quem diz, umas notas para ir às ‘meninas’, evidentemente ele acompanha-te para te recomendar à ‘patroa’, com a indicação de primeiro passar ali pela farmácia e comprar uma caixa de preservativos, que ‘mais vale prevenir do que remediar’…”e, hoje, todas as ‘meninas’, e não só, são umas depravadas”.

Agora tens dezoito anos e vais para os estudos superiores. Despesas extra, tens de tirar a carta e comprar uma ‘cafeteira’ velha, que isto de ir para a Universidade de transportes não dá estatuto. O curso para o qual julgas ter vocação é Direito ou Belas-Artes, mas o pai diz que isso são cursos sem saída e assim, tu que nem sabes apertar um parafuso, ou se a corrente eléctrica tem fase/terra/neutro, vais para engenheiro, que sempre é um curso tecnológico, com outras possibilidades.

Depois do ‘canudo’ tirado…”sempre um estudante aplicado, com excelentes notas!”…, é altura de começares a trabalhar, um estágio para aprenderes, sem ordenado, só senhas de refeição e depois se ficares aprovado, ingressas nos quadros, com um ordenado de 800€, que sempre é um pouco mais, vale-te o ‘canudo’, do que a geração dos 500€.
No trabalho, o horário de entrada é rigoroso, e mesmo quando adormeces de cansaço, tens de dizer que foi os transportes que se atrasaram ou foi as greves ou as ‘bichas’ do amanhecer. A hora de saída, essa nunca está marcada, tens de dar o melhor do teu esforço,..."o teu esforço é muito bonito"..., uma energia que se quer nacional, para aumentar a produtividade, como é óbvio, isto está mau para todos.

Até ao momento tens tido uns namoricos, umas garotas sem interesse, mas agora surge uma situação mais séria na tua vida. Os teus pais já há muito tempo que te falavam da ‘tal’ menina, filha de boas famílias e com ‘algum’ de seu, e tu, apesar de verificares não ser a ‘tal’ nenhuma beldade, aceitas o conselho dos pais e logo o casamento fica marcado. Não sabias que, ‘as boas famílias’, era só aparência, hipocrisia e que o ‘algum’, depois de andares uma vida a bajular os ‘velhos’, só viria a chegar, e nada daquilo que pensavas, quando já eras coxo e não tinhas dentes.
O casamento é conveniente que seja pela Igreja, isto dos casamentos apenas pelo Registo é…”meio caminho andado para o divórcio”..., libertinagem, assim deves convencer o teu padrinho a comprar-te um fraque 'à maneira' e a tua noiva deve ir de vestido virginalmente branco e não esquecer o ramo de flor de laranjeira!

Mas antes do casamento é necessário a compra da casa, que isto do ‘amor e uma cabana’ era coisa do antigamente. Assim, já em conjunto com a noiva, compras uma casa, com um financiamento por 50 anos, ficas a pagar 500€, a casa tem de ser baratinha, a vida não está fácil, não pensando sequer que a casa só será tua quando tiveres 75 anos, quase com os pés para a cova, antes pertenceu sempre ao Banco, mas está bem, é um orgulho, tiveste uma casa tua, por poucos dias, uma casa agora velha e decrépita, mas tua!

Agora casado, com casa nova e carro novo, adquirido também a prestações, julgas-te uma pessoa importante, a ponto de pensares que o homem que te tira o chapéu é por te julgar superior, quando é apenas um pedinte, pedindo esmola.

Assim e no engano de pensares ter personalidade, seres um homem
livre, não consegues ver que a tua vida é aquilo que a sociedade,
os poderes instituídos, querem que seja e não aquilo que imaginavas, tudo te vende aquilo que não queres comprar, tudo te impinge aquilo que querem que queiras…
Quando vais a um restaurante, pedes pescada de Sesimbra mas comes sardinha, porque já não há pescada e se pedes ‘Posta à Mirandesa’, comes bife da alcatra, pelas mesmas razões; se pedes água das Pedras dão-te Campilho e tu não a rejeitas. Também quando vais ao pub da esquina e pedes uma ‘Guiness’ tens de beber uma ‘Sagres’, porque esta é nacional e promove a selecção de todos nós.

Tudo isto é a liberdade que a vida, o mundo te impõem, e tu és obrigado a aceitar, a não ser que queiras ser ‘um marginal, um vendido, um parasita da sociedade’.

Depois aparecem os filhos, dois, naturalmente , porque mais que isso só para ricos e bem vestidos, antigamente era para os pobres, interessava os pobres serem sempre mais pobres, agora interessa mais seres classe média, a classe que paga os impostos para os ricos serem cada vez mais ricos e tu cada vez menos classe média.

Mais tarde vais para um lar, claro, porque já não dizes coisas com jeito e tropeças ao andar e os teus filhos, coitados, não têm tempo para te aturar, ali vais ter todos os cuidados extremosos , todo o desvelo prestado por pessoas carinhosas e atenciosas, e se para sair tiveres de assinar um papel, isso não é controlo, é apenas para se saber onde andas, para não te perderes!

Esta é a história da tua vida! É fácil verificar que nunca foste livre, foste apenas mais um prisioneiro deste enorme ‘Gulag’ que é o nosso mundo.

Para terminar, nunca penses no suicídio, os médicos não o fazem porque é eutanásia e tu se pensas atirar-te de uma ponte abaixo também não o faças, porque o suicídio é pecado e assim Deus não te aceita no Céu.

Como nota final, quando cá voltares outra vez, dizem que a gente um dia vai regressar a este mundo, tem a coragem de exigir essa liberdade, o seres uma pessoa, que agora te é negada.

(Este alguém desta crónica podes ser tu…)


Quinta do Anjo, Agosto de 2008

Carlos Manuel F.Gonçalves